11.9.20

“Uma mente depravada”


Hinds, “Good Bad Times”, in https://www.youtube.com/watch?v=XVdJUy5KCJY&frags=pl%2Cwn 

O jornalista, muito circunspecto e de olhar pesado, informou que um jornal estrangeiro por sua vez tinha informado que se descobriu que Bin Laden tinha uma abundante coleção de filmes pornográficos. Ficou por saber a origem (diga-se: a fonte primária) da notícia. Ficou por saber se a informação foi sussurrada pelos serviços secretos, à guisa de desinformação, e o órgão de comunicação social amestradamente tratou de a espalhar. Ficou por saber se a informação era fidedigna, ou se cuidava apenas de distrair as atenções. Ficou por saber, se fosse fidedigna a informação, se o terrorista tinha uma coleção de filmes pornográficos por autorrecreação (afinal o homem teria uma abrupta queda pela pornografia, e não deve ser o único) ou se, como era insinuado na notícia, os filmes eram usados para passar informações cifradas aos terroristas recrutados.

E, no fundo, nada disso interessa. 

(Ou melhor: não é que todas aquelas dúvidas sejam irrelevantes do ponto de vista do ofício do jornalista. É irrelevante pelo prisma que escolhi ao trazer o episódio para este texto.) 

O que interessa é o modo atrapalhado com que o jornalista glosou o sucedido. Para rematar a sua intervenção, o plumitivo engasgou-se no silêncio, hesitou por uns eternos segundos, e lá epilogou a custo, com um ar que somava o asco com a superioridade moral, que Bin Laden tinha uma “mente depravada”.

(Também ficou por dilucidar se a “mente depravada” se devia mais ao gosto por filmes pornográficos, ou por ter sido o autor moral de tantos atentados terroristas com as conhecidas consequências.)

O jornalista terá ficado mais horrorizado com a revelação agora feita sobre este traço da personalidade de Bin Laden. Uma “mente depravada” é alguém que vê e/ou coleciona pornografia. Falta acrescentar, em abono da contextualização do sucedido, que o jornalista passou muitos anos na “emissora católica portuguesa”, o que talvez explique o abalo psicológico que sofreu ao saber da propensão de Bin Laden para a pornografia – tanto que escolheu uma irrelevância para comentar notícias publicadas pela imprensa internacional naquele dia. E se não fosse Bin Laden, mas a jornalista que com ele contracenava, também lhe dirigia o labéu acusatório? Não nos digam que os políticos (conceda-se que Bin Laden o foi) ou públicas figuras (os chamados “notáveis”) não podem ter os seus vícios privados, quaisquer que sejam? Se são privados, estes vícios não se sujeitam ao escrutínio público dos grandes tutores da moralidade também ela pública. A vida privada das pessoas ainda é do foro privado, inescrutável pelo público. 

Pelo que se sabe – a prosperidade da indústria da pornografia – o senhor jornalista teria muito pudicamente que bater no peito e lamentar-se que uma parcela significativa da humanidade tenha “mentes depravadas”. Ou então, e de uma vez por todas, os embaixadores das sacristias deviam perder a vesânia de se pronunciarem sobre os hábitos privados dos outros, quaisquer que sejam eles, mesmo os que mais choquem os seus puritanos olhares. 

Para muita gente, desde os embaixadores das sacristias aos vigilantes dos modernos costumes que querem impor totalitariamente, é difícil aprender o significado de liberdade.

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