O paradoxo da rotina. Os lugares familiares tornam-se estranhos santuários que povoam o imaginário do nunca visitado, assim que os olhos se desprendem do colete-de-forças dos rituais rotineiros. Logo que os sentidos se emancipam dos gestos instintivos, mecânicos, robotizados, as portas abrem-se a um lado incógnito que, contudo, sempre esteve ali parado diante dos olhos. Os sentidos andaram vendados todos esses anos. Em todo esse tempo, os lugares habituais, as coisas mais insignificantes, até mesmo as pessoas, são sítios diferentes dos que foram construídos no imaginário das coisas rotineiras.
O tempo da redescoberta exige um mergulho na letargia. É estranho que seja em letargia que o espírito se liberta das amarras do quotidiano e parte em busca dos pormenores escondidos. Ao mesmo tempo, instala-se uma estranha sensação quando esses pequenos nadas são descobertos: é o súbito entranhar de um lugar estranho, e no entanto tão enraizado na vista educada para nem se deter nesses lugares. Uma erupção dos sentidos anuncia a estranheza dos lugares, das coisas, das pessoas. Um vulto invade os poros e diz que somos estranhos em lugares que julgamos conhecidos.
Os sentidos reagem como se estivessem a visitar um lugar desconhecido. Os olhos detêm-se demoradamente na vista geral do quadro defronte da vista. Depois a cabeça ondeia em redor, para que os olhos possam capturar os pormenores que andaram anos a fio ofuscados pela névoa da rotina. Tudo se passa como se o corpo fizesse uma viagem sem sair do sítio. Chega a um lugar estranho. Naquele momento em que fitava a escadaria de repente desconhecida, uma erupção de sentimentos contraditórios: a estranha sensação de um lugar familiar que afinal deixava de o ser; a recompensa de desvendar um sítio despercebido há tanto tempo.
Nem sequer conhecemos os lugares, as coisas, as pessoas que estão por dentro da nossa rotina. Por estarmos aprisionados na indolência da rotina, prisioneiros dos rituais que apascentam os dias que vão sendo dobrados no calendário, todos iguais. Uma acomodação que adormece o espírito. E se julgamos que é urgente conhecer outras paragens, distantes ou não, para cultivar o espírito ávido de descobrir o mundo, escapa-nos que nem os lugares conhecidos o são verdadeiramente. Seres desorientados, desenraizados, ou apenas o sinal da habituação a lugares que se visitam com a frequência que a rotina obriga?
Não há drama em saber que somos estranhos nos lugares que julgamos conhecer como as palmas das mãos. Nem que sejam os microscópicos detalhes que escapam à vista desatenta, há um ângulo diferente, um recanto escondido, ou até o plano geral, mais demorado, que desnudam o lugar desconhecido aos olhos. Tanto por revelar. Apenas um breve momento de espera, aparentemente desligado do mundo, basta para empenhar o julgamento dos lugares conhecidos.