Hoje a caixa do correio albergava um pasquim que se dava a conhecer como “Folha de Portugal”. Nome enganador. Ao lado do título, uma cruz pespegada evocava os feitos da gesta de navegantes que andou em descoberta das sete partidas do mundo. Desprevenido, diria que era uma folha a destilar propaganda a um grupelho de extrema-direita.
Os olhos de curiosidade aguçada empurraram as mãos para dedilhar as páginas do periódico. Breves segundos para desmascarar o logro. À espera de ler páginas debruadas com a jactante escrita dos saudosistas da portugalidade de antanho agora reduzida à sua mais ínfima expressão, grotescos dislates contra os emigrantes e loas aos ditadores que permanecem fantasmas ameaçadores na memória das gerações mais velhas. Desencantados, os olhos deram de caras com um pasquim de uma daquelas igrejas marginais (no bom sentido da palavra – de franjas, minoritária) que se dão a conhecer pela bizarria do culto e pela entrega (no sentido material do termo) dos crentes. Demorei mais tempo a passar da página um para a página dois que a percorrer as restantes catorze páginas, tal o interesse do ardil que desfolhava à minha frente.
Fixei o olhar na página doze, na coluna que preenchia o lateral direito. Rezava o seguinte: “a redescoberta começa pela obediência a Deus”. Cartão de convite para nem ler o conteúdo da “notícia”. Mas não pude resistir a deter-me demoradamente na mensagem. Sobretudo na parte que proclama a “obediência a Deus”. A frase soa a impossível para o agnóstico. Não lhe deixa imparcialidade para abordar com distância a entrega obediente dos súbditos à divina entidade que adoram. Mas como os crentes de qualquer religião estão desapossados da mesma imparcialidade – quer para ajuizarem em causa própria, quer para apreciarem as religiões dos outros – a imparcialidade é ofício impossível no domínio. Problema que não se coloca para quem está fora do terreno sagrado da metafísica.
Hei-de continuar a não perceber as religiões que falam de entrega e obediência ao seu deus. Por um momento, imagino-me destinatário daquela mensagem imperativa: que se impõe a obediência a deus. Sem tergiversações. Deus comanda e o Homem limita-se a obedecer. Sem nunca questionar os comandos divinos, a sua justeza. Quando se apela à obediência molda-se um rebanho de amansadas ovelhas, certeiras rezes que ouvem as ordens e delas não duvidam por um segundo que seja. O deus é bondoso, magnânimo, omnisciente, omnipresente, e tantos outros predicados fora do alcance da humanidade. Chega para não ser contestado. Apenas obedecido. No rescaldo de tão passiva atitude, um deus, uma religião – as religiões – que condenam a humanidade a ser refém das deificadas entidades por ela inventadas. É o Homem com necessidade da transcendência para explicar o que os sentidos e a razão se demitem de explicar.
À memória vem um episódio com mais de quinze anos. Ainda estudante, entretido com a tarefa espinhosa de estudar para os exames. Tocou a campainha. O pretexto para uma pausa no estudo. Do outro lado estava um casal com o ar do que eram: beatos impenitentes, confissão jeová. A ocasião para os escutar por uns momentos. Não estava interessado em aderir à causa. Queria ser benzido com a retórica dos pregadores jeovás, para descomprimir de algumas horas seguidas de estudo. Um momento lúdico, portanto.
O sujeito atarracado soltou as palavras, que saíam apressadas, algumas vezes encavalitadas. Começou a ruborizar, o que se devia em parte à quase perda de fôlego e, noutra parte, à excitação da prédica. Falava vezes sem conta no “mafarrico fornicador”. A certa altura já nem me detinha no resto da mensagem. Só estava à espera da próxima vez que o “mafarrico fornicador” entrava em cena. A senhora de meia-idade e pernas arqueadas como um homem do futebol só acenava em sinal de concordância veemente. Não lhe ouvi a voz. O pregador de Jeová era o seu herói.
A meio da profusa pregação, comecei a perder a paciência. Interrompi o artista: estava muito ocupado, tinha que retomar as minhas tarefas – disse-lhe. Indignado, questionou-me que tarefas eram. Apanhou-me sem reacção por uns instantes, tamanha a audácia. Ao “com licença” seguiu-se a porta fechada na cara do indivíduo que não parava de gesticular enquanto despachava as palavras mecânicas que lhe tinham instruído na formação especializada e tentava entregar em mão um folheto com o roteiro para a “verdade”. Como sempre desconfiei de castradoras personagens que se nobilitam pela pregação da moral aos outros (que é sempre mais fácil que praticar em si mesmo essa moral…), percebi que a parceira de difusão religiosa, pelo ar embevecido com que contemplava o sermão, teria sido a vítima do mafarrico fornicador que vivia enclausurado dentro da acanhada personagem a quem tinha acabado de cortar a palavra.
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