8.9.06

“Pain in the ass” (um texto homofóbico)

Não é a primeira vez que ando às voltas com expressões em língua inglesa que, traduzidas à letra para a língua de Camões, resultam num nó difícil de desatar. Dizemos “que chato”, em linguagem cheia de vernaculidade, quando deparamos com alguém que nos provoca um longo bocejo, por ser presença desagradável. Os ingleses referem-se a essa pessoa como um “pain in the ass”. Fazendo a retroversão à letra, a personagem cuja presença se procura evitar provoca uma “dor no traseiro”.

Há expressões idiomáticas que valem mais pelo seu simbolismo do que pelo teor literal das palavras contidas. Sabemos que é verdade, quando descaímos para o calão e usamos, quase sempre inconscientemente, expressões que, fossem levadas à letra, são ofensivas a quem as dirigimos. Todavia, esta expressão vulgarizada por quem fala o idioma inglês deixa-me intrigado.
Primeiro, interrogo-mo da comparação entre o indivíduo desagradável e a dor no “dito cujo”. Como foi inventada esta expressão idiomática é um mistério que merecia trabalho de investigação demorado. Apetece mergulhar no passado, como se fosse possível viajar no tempo. Descobrir quem usou pela primeira vez esta expressão. E perguntar-lhe como teve a noção do que é sentir “pain in the ass”. Esta deriva escatológica, com laivos homossexuais, está presente noutros momentos da idiomática inglesa. Quem fala esta língua chama “ass hole” aos que passeiam a sua imbecilidade.

Em segundo lugar, esta expressão devia estar banida agora que vingou o império do pensamento politicamente correcto. Não é novidade que o politicamente correcto aconselha a não usar certas expressões, julgadas ofensivas aos costumes renovados com os traços de (pós) modernidade. Fica mal dizermos “preto”; convém referirmos “negro”. E até se dá o caso de as vanguardas do politicamente correcto nem “negro” aceitarem. Têm razão: qual a diferença entre “preto” e “negro”? Rótulo alternativo, com a macieza hipócrita: “afro-americano” (rótulo usado nos Estados Unidos). E “paneleiro”, “bicha”, “maricas” são termos com conotação ofensiva, vistos pelo tom depreciativo de quem os usa para se referir a um homossexual.

O problema da expressão “pain in the ass” é ignorar que os homossexuais masculinos não concordarão com ela. Quem a usa é fautor da discriminação sexual que remete os homossexuais para um lugar escondido da sociedade. O império do politicamente correcto ainda não terá reparado no mau gosto da expressão “pain in the ass”. Há uma maneira alternativa de fazer a hermenêutica da expressão. Ou bem que ela tem o entendimento tradicional, nitidamente homofóbico por não levar em consideração que os homossexuais masculinos valoram a coisa de forma diferente; ou então, para um homossexual, decerto um indivíduo que entre na categoria dos “pain in the ass” não é um chato, é alguém cuja presença se revela muito agradável…

Os idiomas encerram mistérios insondáveis. E quando se pensa que por cá somos uma sociedade mais conservadora, menos tolerante para formas de sexualidade alternativa, o idioma dos outros (dos países que falam inglês) desmente-o. O simples facto de estar enraizada a expressão “pain in the ass” é uma desconsideração para os homossexuais. Uma forma escondida de os remeter para as franjas da sociedade, ao ostracismo.

Há também uma maneira alternativa de encarar a problemática – que é nem sequer achar que isto é um problema. As palavras são, tantas vezes, lugares vãos onde não se abriga o sentido literal que elas encerram. Mau seria, aliás, que fosse vedado aos rezingões marialvas destas e de outras praças o direito de repudiarem as práticas homossexuais. Pelo menos no que a eles diz respeito. Daí que lhes assista o direito de dizerem “pain in the ass” quando dão de caras com um grandessíssimo chato. Este, coitado, já não bastava ser uma personagem aborrecida, ainda arrosta com o rótulo nada agradável de, com a sua presença, infligir uma “pain in the ass” aos que o suportam. Porventura sem o ser, o infeliz chato ainda tem que suportar a sugestão da sua homossexualidade escondida. E o auto-cinismo daqueles que lhe chamam “pain in the ass”: para lhe dirigirem o rótulo, fica subentendido que tiveram que suportar a tal dor…
Parece-me que os nativos que falam o idioma inglês têm um problema mal resolvido com a homossexualidade. Ou uma homossexualidade reprimida.

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