6.9.06

"O sucesso e a culpa são as faces da mesma moeda"

O artista apregoa no refrão, uma e outra vez: “o sucesso e a culpa são as faces da mesma moeda”. A música moderna é um estandarte da contestação social, é sabido. O discurso contestatário cai bem na audiência, até nas grandes multinacionais da produção musical que fazem fortuna com artistas que não se cansam de apostrofar o capitalismo. Curiosa cumplicidade: a dos artistas com um esteio do capitalismo que renegam, contribuindo para engrossar dos lucros da editora; e a das editoras, que assinam contrato com artistas que convocam as massas para a revolta contra o estado de coisas em que estamos, o tal “capitalismo selvagem” de que as editoras são um dos expoentes.

Regresso ao refrão estigmatizante. Aquela música enche os ouvidos da audiência com a sentença de que sucesso e culpa andam de braço dado. Lá está um dos lugares comuns que arrebata as emoções de massas excitadas. E, contudo, apetece demorar na sentença prefaciada pelo artista. Há muitos senãos pelo caminho a impedirem o aplauso a sentença tão lapidar. Justamente por ser tão lapidar.

Primeiro óbice: sucesso e culpa não são do domínio do objectivo. Duas pessoas podem encarar de forma diferente o sucesso. As expectativas que servem de ponto de partida podem ser diferentes. As ambições variam de pessoa para pessoa. As vicissitudes tocam-nos com o sabor do aleatório. As reacções perante os infortúnios e as conquistas divergem consoante os indivíduos. Tudo para confirmar que o sucesso é coisa subjectiva. Mais importante: a medida do sucesso apenas interessa ao indivíduo que é por ele bafejado. Quando começamos a olhar para o sucesso dos outros, por norma derivamos para a inveja, uma das piores maleitas da modernidade.

Segundo obstáculo: sucesso em geral, ou sucesso em aspectos particulares? O sucesso na vida pessoal – a felicidade, para uns o valor supremo – tem a mesma importância que o sucesso na vida profissional? Varia. Entregues à voragem da carreira profissional, para muitos essa é a prioridade. Para esses, a felicidade constrói-se pelos feitos profissionais, como se houvesse uma simbiose entre a vida profissional e a vida pessoal. Como se esta se diluísse naquela.

Terceira objecção: faz sentido a generalização contida no refrão sussurrado pelo artista? Todo o sucesso é sinal de culpa, dando a entender que para se chegar ao sucesso (aceitando, por um momento, que é algo objectivo) é necessário percorrer caminhos ínvios, estender a passadeira à fraude? Existe o sentimento generalizado de que vingam os incapazes, os medíocres, aqueles cujo único predicado é saberem por a funcionar a cunha que desata os nós que aparecem pelo caminho. É uma generalização. Como acontece com as generalizações, perigosa. Se o lugar dominante dos medíocres parece um dado adquirido, decerto todos conhecemos casos em que o mérito deu lugar ao sucesso. Conheço alguns, pessoas de muito valor que nunca precisaram de esgravatar favores sórdidos para escalarem a vereda do sucesso. E assim se desmente a visão do artista, assim se desmonta o pessimismo exacerbado que mete no mesmo saco toda a gente, sem cuidar de seleccionar as excepções.

Quarta objecção: um erro de palmatória. Ao julgar que a culpa é o reverso do sucesso, entra pela segunda vez no terreno movediço da objectivação do que não pode ser objectivo. A culpa remete para a consciência. E há algo mais subjectivo, mais volátil, do que a consciência individual? Logo, a culpa também ocupa um lugar diferenciado no interior de cada um de nós. Um acto pode ter efeitos devastadores numa pessoa, pela dificuldade que a sua consciência tem ao lidar com o deslize; já para outro, mais frio, ou com a consciência aligeirada, o mesmo acto pertence ao domínio da normalidade. Ainda se pode ajuizar que sucesso e culpa são a face da mesma moeda?
Basta olhar em redor. Ver a insolência com que “sucessos” de jaez duvidosa levam personagens à emproada vaidade quando desfilam atrelados à glória conquistada. E ver como impera, cada vez mais, o sentido da naturalidade quando vinga a divisa “os fins não olham aos meios”. Na política é lugar comum, como o é no desporto, como provam as tentativas para remeter para a gaveta do esquecimento os escândalos que envolvem a sórdida personagem que empesta há mais de vinte anos o futebol nacional. Repito a pergunta: tem o artista a certeza que a culpa anda de braço dado com o sucesso? É que não vejo ninguém a procurar expiar as tormentas que trazem insónias à consciência. O que vejo é o branqueamento de comportamentos fraudulentos que semearam um sucesso fétido.

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