25.9.06

A censura democrática


Há censuras boas, legítimas, balsâmicas? Nos tempos que correm, sente-se a formatação das mentes para o aviltante registo da História, quando resgata a repressão das ditaduras. E, no entanto, é constante o atropelo de “democratas” de diversa filiação, que não hesitam em exercer uma discreta censura em relação ao que incomoda o seu magistério. Por discreta que seja, de censura se trata. Não fica a democracia maculada com a sombra da censura?


Os exemplos sucedem-se. Lembro-me da notícia que dá conta que Rui Rio decidiu condicionar os subsídios à produção cinematográfica local: os criadores que concorrem aos dinheiros municipais comprometem-se a não passar uma imagem desagradável do Porto. Chama-se a isto condicionamento da liberdade de criação. Já estou a adivinhar que alguns acharão que Rio está no seu direito: perguntarão se não faz sentido que um filme ou um documentário subsidiado pela câmara municipal deva desfazer-se em elogios à cidade. Os atónitos com a minha denúncia culminarão com o aforismo popular que envolve um prato de sopa e cuspidelas. E darão conta da hipocrisia do artista que, recebendo dinheiros camarários, produz obra pouco simpática para o burgo que o subsidiou.


São objecções irrelevantes perante o desrespeito de um princípio maior que, talvez esteja enganado, é axial para a democracia. Podem vir com aquelas indignações, situando-se ao lado de Rui Rio, que o atropelo da pré-censura não se apaga. E a menos que tenham dado nova roupagem ao que se entende por democracia (descaindo para um relativismo que não se cansam, noutras arenas, de criticar), continuo ser perceber como tolerar qualquer manifestação de censura, mesmo das mais subtis, num regime que se afirma democrático. Porventura, é só a ingenuidade que me consome.


Podíamos indagar das razões de Rio. Podíamos perceber que Rio convive mal com a crítica que lhe é endereçada. Não está sozinho. Tem rivais que lhe levam a palma, neste pérfido campeonato nacional das figuras públicas que pregam a tolerância para os outros e se esquecem de a praticar em si mesmos; o primeiro-ministro é figura maior no certame. Podíamos descobrir que o presidente da câmara do Porto teme que os documentários ou filmes subsidiados sejam arma de arremesso contra a sua obra. Rio sabe que os artistas da área têm o hábito de refulgir à esquerda, são sensíveis à politização da obra que criam. Há que o impedir, por via contratual. Nem que seja ao arrepio de um dos baluartes da democracia, a mesma democracia que sancionou a eleição do autarca.


Não poderei eu, suposto criador da área, passar através da lente uma imagem menos simpática da cidade que me viu nascer e onde, apesar de tudo, gosto de viver? Temos que ruminar no silêncio do unanimismo forçado, como se o sítio onde vivemos fosse o prometido paraíso celestial? Haverá algum problema de um filme ou um documentário sobre o Porto mostrar o lado menos bom da cidade? Os podres devem ficar escondidos detrás dos subsídios municipais que dão alvará à criação artística? Pode ser problema meu, mas sempre que alguém tenta divulgar paraísos, imunes a vícios ou defeitos, é quando mais depressa apetece vasculhar por todo o lado para encontrar pequenas (que sejam) sementes da antítese da perfeição.


Alguém que se serviu das mordomias da democracia (pois foi eleito pelo voto popular) vai praticando o seu contrário. No tempo do “tenebroso fascismo” o lápis azul riscava do mapa as coisas feitas que não interessava divulgar, por temor que abalassem os alicerces da ditadura estabelecida. Agora o cutelo funciona antes do tempo (e não depois do acto criador, como outrora). É uma espada ameaçadora que pesa sobre a cabeça dos criadores que anseiam pelo mecenato camarário, cientes que ou o guião é generoso para a cidade ou a resposta é um não liminar.


Infalíveis, os simples mortais possuídos por uma aura mística que os eleva acima dos demais. A prova da inerrância é a censura sobre os que ousam dissidir. São fautores de uma empobrecida democracia, que tantas vezes se limita à roupagem formal de um regime que busca no voto dos eleitores a autorização para os atropelos necessários até a um novo sufrágio. Desconfio desta democracia e dos seus actores menores que não honram o regime que os escolheu. Não me inspira tranquilidade.

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