26.9.06

Sair deste filme

Apetece desligar da corrente, como se fosse possível ir beber oxigénio para um lugar escondido. Onde não houvesse imperativo de fumegar as desventuras que sombreiam a respiração. Apetece andar desatento do mundo, olhar para o lado contrário àquele de onde chegam as notícias. Não ler jornais, não ouvir estações de rádio com noticiários à hora certa, não acompanhar a refeição com os serviços noticiosos das televisões.

Anseio pela busca de um exílio. O exílio do mundo que teimo em conhecer. Um refúgio que me faça ser como o avestruz. Apenas uma fuga, sem curar de saber para que lugar é o degredo. Nem que seja um caminho errante. Saber apenas que é um lugar diferente do miradouro de onde me é dado a observar o mundo. Cansado de tropeçar em arbustos rasteiros, espinhosos, pestilentos, que laceram a pele, semeiam a dor que se demora a despedir do corpo. Lá fora, por onde a vista se habituou a repousar, detenho-me no opróbrio que adeja sobre figuras emproadas do alto da desfaçatez maior. Pedem a passadeira para desfilar a empanturrada desvergonha. Riem-se dos que lêem por outra cartilha. E cantam: a honestidade é pena para os fracos de espírito.

A enxurrada de notícias é uma doença que deixa feridas abertas, a carne viva exposta a todas as inclemências dos elementos, até dos parasitas que aí se saciam. É errada a ideia dos abutres necrófagos; eles pairam sobre corpos ainda quentes, distantes do encontro com a morte. E não são só os abutres corpulentos com garras afiadas que se deitam nas carcaças que ainda o não são. Alindam-se nos seus fatos negros mas não conseguem disfarçar o cheiro intenso à naftalina dos carrascos, estas sentinelas da decência alheia. Pede-se-lhes a árdua tarefa de sentenciarem a moral dos desalinhados, com o dedo espetado de quem espera fazer sangue para aplauso da turba.

As notícias são uma indústria fétida, um sarcófago de onde se libertam as excrescências que impossibilitam a tranquilidade. Há dias em que desespero por não conseguir iludir as algemas que prendem ao mundo de que me tornei viciosamente dependente. É como se fosse uma droga, dura. Sei o mal que me faz. E, contudo, não há meio de quebrar o elo com as fontes das notícias que são o sabor amargo e ácido do mundo na sua faceta real. O choque é maior porque percebo como vivo enclausurado nas teias da ingenuidade. E se as coisas se mostram em toda a sua diferença, comparadas com a ingénua pureza com que as idealizo, há a urgência de uma carapaça. Com ela nasce a insensibilidade pelo grotesco, o embrutecimento que reage à brutalidade ímpar.

Quero ter a coragem de ser acometido pela adocicada hipocrisia. A hipocrisia de fugir para um lugar diferente do miradouro de onde contemplo a vista turva que queima as pálpebras. A hipocrisia de fazer de conta que tudo é simulado, ou uma gigantesca encenação que faz parte de um demorado pesadelo que impede a revelação da alvorada. Queria ter a coragem de ser hipócrita para ignorar que há notícias, que há mundo – pelo menos o mundo que os olhos discernem como real.

Queria que essa covardia me trouxesse o perfume da tanta poesia agendada para os anos vindouros, que vão sendo poeira do passado sem que as páginas dos poetas sejam sequer dedilhadas. Queria descobrir a poesia, e a música, e os filmes, os quadros que não conheço. Procurar outro zénite onde a alma por fim houvesse de se encontrar com a revigorante liberdade. Sem as amarras do mundo que me circunda, ou as verdades imperativas do credo social. Um sonho que seja, tão demorado como o pesadelo plúmbeo que asfixia a temperança interior.
É mais forte que os desejos que formulados num momento de lucidez. Suspeito que as sinuosas curvas do caminho por diante escondem as pedras traiçoeiras de uma estrada apoderada pelo nevoeiro. Tudo deixa de ser nítido, quando a busca de explicações para o inexplicável turva o discernimento. É então que um súbito raio promissor irrompe entre o nevoeiro que deixou de ser impenetrável. Vem dizer, o raio translúcido, que as novas que me chegam são só a aparência que os pesadelos teimam em desnudar. O mundo que interessa está fora da estrada sinuosa, escorregadia, tornada baça pela cortina de nevoeiro. À distância de um pequeno passo que pode levar tão longe.

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