12.9.06

Não quero ser “chipado”


Os chips, pensava na minha candura, são material informático. Ou o chip electrónico que os adeptos do tunning colocam nos seus bólides para verem aumentada a potência controlada pelo pé direito. E havia a modernice do chip implantado no cão de estimação, que localiza o canídeo na eventualidade de se perder de casa. Agora temos chips atrelados à nossa existência. É o cartão único, os passaportes biométricos, dados pessoais muito na guarda do Big Brother cada vez mais “watching us”.


Dirão os que aplaudem de pé as iniciativas tecnológicas do governo da imagem sempre branca: quem não deve não teme. Acusação empertigada, de dedo em riste e tudo, desafiando a acatar a solução em nome da segurança. O desafio não me comove. Prezo demais as liberdades individuais para aceitar que estas inovações fantásticas passem incólumes na lavagem da privacidade, doravante cada vez mais reduzida a um minúsculo território, sempre aberto às investidas do omnipresente Estado. Não devo, nem temo; é por isso mesmo que não posso permitir que os dados pessoais sejam coligidos num chip, com zelosos burocratas a terem acesso a dados que só a mim dizem respeito.


Perturba-me só a ideia de um burocrata nos tempos mortos começar a vasculhar a minha intimidade. A intimidade armazenada no chip, com dados biométricos a preceito. Lá virão alguns acusar-me de ser um velho do Restelo. Condescendentes, ou apenas iludidos com a faraónica missão do Estado que se diz nosso protector, com a sentença preparada: se zelo pela segurança – pessoal, dos entes queridos, de toda a colectividade – devia prescindir das rejeições ao cartão único, ao passaporte biométrico e a outras torrentes tecnológicas adoptadas pelo governo da imagem mais-branco-não-há. Desconfio da bondade dos nossos protectores. Suspeito que a fobia de segurança que se instalou, com os suspeitos do costume, seja o pretexto para as intromissões na esfera pessoal. Socialismo, portanto. Olho para as investidas que se encavalitam dia após dia, e não me consigo esquecer que Hitler também se inspirou no socialismo.


Tendência inexorável à vista desarmada: vivemos acossados por todos os lados, com o cruzamento de dados que a infalível informática permite. Sitiados nas masmorras bem altas, a cada passo mais altas, edificadas pelos incansáveis engenheiros sociais que se oferecem como curadores do nosso seguro destino. Se o preço a pagar é a entrega da minha privacidade nos braços de anónimos funcionários públicos, prefiro a alternativa. No fundo, a alternativa entre a fobia securitária em nome de uma aparente liberdade, e a liberdade genuína, sem paredes espinhosas levantadas pelas autoridades.


Não quero ser manobrado à distância enquanto os burocratas com a missão de olhar por nós (dir-se-ia, em homenagem ao rigor, “de olho em nós”) se entretêm a desfazer a intimidade tutelada pelos dados privados armazenados no chip. E repugna-me o convencimento destes governantes, que se deitam com a certeza que estão a fazer avançar a nau no bom sentido, convencidos que prestam um serviço inestimável. Mais me custa a turba de alienados que se convence do convencimento da casta que abocanhou o poder. Aplaudem demoradamente o legado, sem discernirem a demissão da sua privacidade, ludibriados pela arte de vender a banha da cobra.


Qualquer dia, o Estado surpreenderá os cidadãos votantes com um GPS incorporado, outro micro chip para nunca sermos dados como perdidos num ausente lugar. Misteriosos dilemas policiais seriam decifrados antes de o chegarem a ser. O benevolente chip, encravado debaixo da pele como se fosse parte da nossa carne, pronto estará para a sua missão. Com a vantagem adicional de nunca nos tentarmos por caminhos ínvios, que logo o trajecto rastreado pelo GPS chipado nos denunciará. A caminho de uma sociedade pura, casta, sem vícios privados – impossíveis pelos rastreios – imaculadamente moral.


Nesse dia, ao acordar, quero-me convencer que é apenas um terrífico pesadelo. Que os engenheiros sociais embarcaram, exilados, para espalhar a sua bonomia noutras paragens. Ou então, realizado o não pesadelo, ser eu a perguntar para que lado é o exílio, senão mesmo a apátrida condição. Temo que a febre da expansão seja congénita: outrora conquistámos outros povos; no futuro lugar às conquistas internas, pela domesticação de cada membro do rebanho, até à acefalia.

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