21.9.06

Os políticos e as mentiras necessárias


O caos desceu às ruas de Budapeste. Por mistérios insondáveis, veio a público a gravação de uma reunião quase clandestina da irmandade socialista húngara, onde o primeiro-ministro disse, com todas as letras, que tinha mentido à população. “Mentimos descaradamente”, terá dito. E confessou que se não o tivesse feito, ele e a trupe nunca teriam ganho as eleições. Os manifestantes prometem prolongar os protestos, até que o descarado primeiro-ministro tenha vergonha na cara e peça a demissão e desculpa ao povo enganado. Enquanto esperam pelo desfecho desejado, os guerreiros de rua acampam pela luz do dia. Recarregam as forças para voltar a espalhar a confusão quando a noite tomar o seu lugar.


Quando li os pormenores do episódio, fiquei dividido na reacção. Havia metade de mim que reagia desta forma: fosse a Hungria uma democracia madura, e no instante imediato à revelação das palavras do primeiro-ministro não lhe restava outra solução senão a demissão. Esta seria a atitude óbvia em democracias amadurecidas, onde o escrutínio popular dos governantes é mais apertado. Da outra metade de mim – a parte mais racional, despida de emotividade – emergia outra reacção. Indagava acerca do sentido da verdade nas afirmações dos políticos (em democracias adolescentes, ou em democracias de idade vetusta). Quantas vezes o que nos impingem como verdade insofismável é uma mentira desbragada? Não são os políticos pródigos em mentiras necessárias que, por o serem, acabam por ver atenuada a mácula da mentira?


O episódio húngaro é diferente apenas porque a honestidade desarmante do primeiro-ministro foi revelada, quando se supunha que aquelas palavras não sairiam da quase clandestinidade da reunião dos militantes do partido. Nestes casos, não interessa saber quem traiu a causa, quem divulgou a gravação, nem tão pouco por que motivo o fez. O que seria deste episódio se, como acontece habitualmente, as palavras que contam a verdade só sabida por um núcleo restrito nunca tivessem vindo a público? A verdade é muito relativa. E quando fica escondida no recato de uma sala de reuniões tomada pelas camadas de fumo de tabaco que estimulam a imaginação decisória, as massas só têm direito à verdade conveniente. Ainda que a verdade conveniente seja uma mentira redonda.


Ser político é tarefa ingrata. O primeiro-ministro húngaro confessou que se não tivessem engendrado a mentira nunca teriam saboreado a vitória eleitoral. Disse-o para os apaniguados reunidos à laia de sociedade secreta. Com o escândalo na rua, deu a cara às câmaras da televisão para contar uma versão diferente: que a situação da Hungria era tão difícil que só uma terapia de choque, tão impopular, acalentava esperanças de trazer o país para o bom caminho. Só que o público não podia saber que a terapia de choque seria prescrita. Caso contrário não teria escolhido a salvífica personagem para liderar a nau. Conclusão: na política há mentiras necessárias que ganham estatuto de verdade.


Agora que reflicto no episódio, sou acometido por um estranho sentimento de solidariedade em relação ao primeiro-ministro húngaro (o que é inusitado, sendo ele um socialista e sabendo-se a minha antipatia congénita pela espécie). Há que explicar esta anómala solidariedade. Ele foi apanhado numa armadilha que raras vezes atraiçoa a classe política. Teve azar. Quantas vezes os políticos só confessam em privado as mentiras necessárias que nunca chegam ao conhecimento do público? Entro no domínio da especulação, sem poder provar a desfaçatez da classe política, pródiga em contar em público uma história pincelada a cor-de-rosa, enquanto em privado desnudam as cores enegrecidas que exibem a realidade. O primeiro-ministro húngaro caiu no alçapão que lhe foi aberto por alguém que seria seu indefectível. O mundo é um lodaçal de traições. E foi uma traição que armadilhou o caminho ao primeiro-ministro da Hungria. O que nunca poderia ter dito em público acabou por desaguar nas mãos do público. Que agora quer sangue.


De repente olho para trás, para o comportamento habitual da classe política que faz o jogo da democracia. Há uma enxurrada de promessas feitas em tempo de campanha eleitoral. Mais tarde, a governação é a negação dessas promessas. Os eleitores, alegremente enganados, como se fossem a mulher traída que assobia para o alto fazendo de conta que nada acontece. E não vejo a diferença entre os políticos que olvidam as suas promessas eleitorais e este episódio do primeiro-ministro húngaro. A certa altura, já nem sei quem revela mais imaturidade democrática: se os ambiciosos políticos e a sua sede de poder pessoal, apanhados na rede da mentira; se o povo que se exalta com o que não deve e deixa passar em branco o essencial.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Paulo, ele não só confessou que mentiu para ganhar as eleições: mentiu durante 2 anos e confessou que tinha executado a pior política de toda a Europa. Ou seja, he adds insult to injury. Conmo escrevi e ilustrei no meu Blog, está longe de ser o único, mas nunca vi nada tão mau. Além do mais, o facto de haver criminosos que escapam à justiça, não justifica que se perdoe os que são apanhados.