31.1.07

A poupança dos beijos


Fico sem jeito quando cumprimento uma senhora e tenho que ficar a meio da função. Parece que a moda alterou um hábito social – cumprimentar as senhoras com dois beijos, um em cada face. A moda dita a economia de esforços. Agora pespega-se um ósculo numa das faces – a que estiver mais a jeito – e encerra-se o assunto.

Fico apatetado com este novo uso social que se espalha. Ainda não habituado a ele, fico de lábios repuxados a meio do caminho para oscular a segunda face, quando a senhora entretanto já desviou a cara para outro lado, satisfeita com o singelo beijo. É como se o chão fugisse debaixo dos pés quando ao segundo passo vem o abismo. Ficam os lábios, por uns breves segundos que se transformam em eternidade pelo desconforto da situação, a beijar o vazio. Tão habituados a agraciar as faces das senhoras com dois beijos que desempatam ambas as faces, os lábios vão sendo educados a cultivar a discriminação das faces. Agora há uma que fica sequiosa do beijo que a outra recebeu. Arremete-se o aleatório: as duas faces invejam-se quando a outra merece o conforto do beijo, sendo depositária do afago que os lábios carnudos semeiam.

Não me acomodo ao novo uso social. Porventura a teimosia deve-se à conotação “social” que o modismo revela. Tias de Cascais terão inspirado a moda, que se contagia por todo o lado, com mais expressão nas aspirantes à ascensão na tão importante escala social. Resisto ao modismo. Prefiro ficar com o segundo beijo suspenso, na patética figura de quem fica parado no vazio com os lábios preparados para o ósculo que já não tem destinatária. Ou teimar, trazer os lábios expectantes do beijo par e perseguir a face esquiva em demanda do ósculo em falta. Poderei arrostar com o rótulo de “possidónio”, demodé, careta, parolo, o que quiserem. Hei-de ateimar pelo controverso gosto de irromper contra o modismo inconsequente. Só por isso; não por defender hábitos instalados, que se há coisa que não sou é conservador.

Estes usos vêm com a educação em casa, sedimentada nos subtis sinais revelados na convivência escolar. São parte da idiossincrasia nacional. Já os franceses estão acostumados a triplicar o beijo. E lembro fotografias que retratavam encontros entre ditadores do bloco comunista, cumprimentando-se com um ternurento e, para os nossos hábitos, homossexual beijo boca a boca. A formatação dos hábitos espalha o incómodo quando somos confrontados com a mudança que se instala. Há gestos que são mecânicos: inspirar e respirar, desviar o olhar quando a audição recebe um ruído estridente, esboçar um sorriso de desdém perante as ideias patéticas dos políticos que enxameiam a comunicação social. E depositar dois ósculos em cada uma das faces das senhoras.

Apetece-me o especulativo exercício de descobrir as razões da moda do beijo ímpar. Só me ocorre que a economia do beijo reproduz a tendência da poupança de esforços que vamos cultivando. Um sinal de modernidade. Os afectos são economizados, pois perdemo-nos em minudências estéreis. São as novas prioridades: o trabalho, a carreira profissional, fermentos do desapego dos sentimentos pessoais. Há, no economizar de ósculos, a desumanização de nós mesmos. Dir-se-ia que o pragmatismo vingou: para quê repetir a função, se o objectivo se preenche com um singelo beijo? Ademais, o princípio encontra reciprocidade nos intervenientes do beijo. Quem o recebe contenta-se com o beijo ímpar, para a sua delicada pele facial não ser cansada com um segundo beijo desnecessário. Quem os pespega poupa beijos para outras ocasiões. Um basta para que a obrigação social esteja preenchida.

Ora, isto será lição para políticos e economistas que pregam no deserto quando divulgam a pedagógica mensagem da poupança. Tentam-nos convencer que consumimos de mais e poupamos de menos. Podiam empregar o exemplo do beijo ímpar. E explicar que, tal como na reconfiguração do uso social que faz com que teimosos homens fiquem de beijo suspenso na função cerceada pela metade, haveria que estender o economizador espírito ao que fazemos com o dinheiro. Às vezes, o exemplo vem do lado mais inusitado. Quem sabe se à custa da moderação oscular um dia seremos um país com mais poupança; logo, com luminosas esperanças de mais prosperidade. Seria irónico: como a poupança de beijos teria funcionado como o tão ambicionado milagre económico que nos é prometido há tanto tempo.

30.1.07

E as plásticas, não devem ser comparticipadas?


O Dr. Póvoas, afamado médico das dietas do Porto, foi entrevistado pelo Primeiro de Janeiro. O jornalista perguntou se “a medicina estética devia ser comparticipada”. Ao que o especialista retorquiu que devia ser “uma obrigação social.” Sem se deter, acrescentou que o “obeso é sempre o parente pobre e os medicamentos para a obesidade aprovados pela FDA custam perto dos 90 euros por mês. Quem é que pode? Não são comparticipados. Mas uma obesidade arrasta uma hipertensão, diabetes, problemas articulares, depressivos…e depois comparticipa-mos (sic) as consequências dessa obesidade. Está errado. Se os medicamentos fossem mais acessíveis e comparticipados, as outras doenças que vêm por arrasto seriam evitadas, como acidentes vasculares, enfartes, etc.

É tudo uma questão de prioridades. Há que descontar a possibilidade do Dr. Póvoas ter actuado como juiz em causa própria. Possivelmente sabe que uma das consequências da comparticipação pública dos medicamentos anti-obesidade seria uma enxurrada de pacientes no seu consultório. Do custo fixo das suas consultas não teriam como se livrar, os pacientes. Todavia, o Dr. Póvoas, decerto informado do catecismo dos economistas, saberia que perante a inundação de clientes podia praticar preços mais baixos. Era um fartote de proventos – e até o paternalista Estado ficaria a ganhar, pois à sua conta os rendimentos gordos do Dr. Póvoas fariam lucrar o guloso fisco.

Repito, é uma questão de prioridades. Se me é facultado o direito opinativo, estou cansado de pagar impostos por tudo e mais alguma coisa, para satisfazer os gastos (as mais das vezes excêntricos) dos sucessivos governos. Se é que tenho o direito de reivindicar enquanto sorumbático pagador de impostos, cá fica a exigência: façam o que quiserem, desde que não aumentem os impostos que sou obrigado a pagar. Querem financiar os medicamentos dos pacientes do Dr. Póvoas? Seja – mas retirem essa fatia de outra rubrica: seja das peças de teatro subsidiadas pelo ministério da cultura, ou da reparação de estradas, ou desafectando pessoal das forças armadas, ou até – e porque não? – cortando a eito no orçamento sumptuosamente consumido pelas tropas diversas.

E, já agora, convoque-se um brainstorming para discernir outras prioridades que arroteiam a felicidade do povo. Subsidiam-se os medicamentos contra a obesidade? Faça-se o mesmo às cirurgias plásticas que nos reconciliam com uma estética corporal que o espelho não envergonhe. Redefinam-se as prioridades: nem hérnias, ou amígdalas, ou meniscos destruídos, ou tratamentos a maleitas que trazem só um ligeiro incómodo. Desviem-se esses dinheiros para as cirurgias que ora corrigem narizes proeminentes, ora acrescentam silicone aos seios de senhoras que anseiam pela respectiva protuberância, ora extirpam quilos e quilos de massa adiposa das ancas e dos abdominais. Que o botox seja entronizado na categoria de prioridades do sistema nacional de saúde, para vermos mais meninas com lábios tão carnudos que até a cabeça lhes descai para a frente, ou senhoras pequeninas com seios tão avantajados que o respectivo centro de gravidade passa a ter novas coordenadas.

São estas coisas que fazem bem à vista. Pessoas desprovidas de gorduras fátuas, reconciliadas com a estética. Pessoas sem vergonha de se olharem ao espelho, coabitando com a auto-estima pessoal. Há, claro, vítimas colaterais. Os divãs dos psiquiatras passam a acumular mais pó perante a debandada dos pacientes com ego insuflado. E não sei se as infidelidades upa-upa, com o desfile de corpos enxutos, caras corrigidas de imperfeições, mais um tentador diabo à solta. Trabalhos forçados para os senhores juízes que julgam divórcios, mais famílias destruídas (ou apenas a felicidade pessoal recomposta noutro agregado), mais lucros para os endemoninhados advogados tarimbados em separações litigiosas.

É para isto que inventaram o Estado, modalidade paternalista a que nos habituámos. Para colmatar erros individuais, que a gula e o despropósito alimentar e a falta de exercício físico plantaram-nos à porta da obesidade, da qual acordamos convictos que a culpa é alheia. Para a correcção das inestéticas dobras que a natureza plantou no nosso corpo, ou para as feiuras que o implacável deus semeou em nós. Que os impostos que pagamos tenham serventia individual. Possam estes lapsos ser corrigidos pelas terapêuticas certas. O sistema nacional de saúde arca com as despesas. Ao menos o Estado sabe, de antemão, que terá entre si cidadãos irradiando uma intensa felicidade pessoal.

Haja visionários como o Dr. Póvoas, almas generosas que oferecem esta consultoria a quem direito sem cobrar um cêntimo. Que os haja às carradas, para romper com a letargia dominante. Este povo merece que as pétalas da felicidade sobre si tombem, em forma de benfazeja chuva.

29.1.07

Prostituição cívica


Não me canso de o afirmar: adoro este mundo onde vivo, sempre cheio de exibições insólitas que deixam a face boquiaberta. O planeta está transformado num museu constante de aberrações. A normalidade perdeu significado. E ainda bem. De outro modo, o que por aí abundava era a rotineira expressão da vida que definha, castrando a mais bela criatividade que puxa o lustro à imaginativa veia humana.

Há dias fiquei a saber que alguém teve uma ideia brilhante na Alemanha: criar uma empresa onde se alistam voluntários para manifestações alheias. São, portanto, manifestantes de aluguer. Caso uma organização qualquer, daquelas que vêm com frequência para a rua protestar com a voz já rouca de tantos pregões entoar, queira encher uma avenida com uma multidão; e se acaso acontecer que a mobilização das hostes não chegue para encher a avenida, um telefonema para a empresa de aluguer de manifestantes é a solução milagrosa.

De agora em diante, os governos e os alvos fáceis da contestação social que se cuidem: as manifestações de protesto serão multitudinárias. Não interessa que uma fatia das vozes de protesto seja de aluguer, vozes que só ali – e por conveniência, com as mãos aquecidas pela maquia paga para entoarem as palavras de protesto – soltam a militância da causa que desfila rua fora. Será impossível saber quantos manifestantes genuínos se misturam com os manifestantes de aluguer. Se estas exibições de cidadania de protesto fracturam as autoridades e os organizadores, quando fazem a contabilidade dos manifestantes, antecipa-se doravante um abismo ainda maior. As dores de cabeça das autoridades, a tentarem perceber quantos são os manifestantes genuínos e qual a percentagem de manifestantes de aluguer. Estou a adivinhar os comunicados de imprensa das centrais de informação que se devotam a cuidar da imagem dos governos sob protesto, na tentativa de minorar os danos: “o protesto reuniu não mais que 40.000 pessoas, das quais 20.000 foram contratadas junto da empresa de aluguer de manifestantes.”

Já li a denúncia do mau gosto da iniciativa. Os habituais pastores da moralidade e dos valores inquestionáveis acham que os manifestantes de aluguer são uma perversão da cidadania. Consideram que as pessoas que emprestam a sua presença e voz grossa a manifestações são almas tresmalhadas que tudo fazem contra a um pagamento. Ninguém os chamou assim, mas tudo se põe a jeito para serem apelidados “prostitutos da cidadania”.

A ideia não me choca. Nestes tempos de carência, qualquer rendimento extra é uma dádiva para os necessitados. Haja dinheiro entre as organizações que são useiras e vezeiras nas manifestações de rua e mais bem-estar será espalhado pelas pessoas necessitadas que engrossam as manifestações. No fundo, há aqui pura redistribuição da riqueza. Alta conotação social, que não se pode contrariar nos dias que correm. Podem alguns duvidar do gesto, questionar o tráfico de consciências que levará muitas pessoas a manifestações sem terem afinidade com o protesto. É o mau hábito dos que querem tutelar uma pretensa consciência colectiva: acham que têm uma palavra a dizer às consciências individuais que se desviam do caminho certo. No fundo, são os habituais pastores de um rebanho que se deseja ordeiro, acrítico, sem ovelhas tresmalhadas. Os pastores lá estão, do alto da sua superioridade moral, apontando o dedo às ovelhas que se afastam do rebanho. Nem que seja necessário entrar num domínio que se julga impenetrável: a consciência individual.

É com isto que fico perplexo, não com a possibilidade de uns milhares de pessoas virem para a rua entoar palavras de ordem com as quais não se revêem. Alguém tem o direito de denunciar as cambalhotas da consciência alheia? Que tenho eu a ver com a pessoa do lado que habitualmente diz piadas de gosto duvidoso acerca de homossexuais e depois esfrega as mãos com o dinheiro recebido por ter participado numa manifestação que reclama o direito dos homossexuais se casarem? Há incoerência? É verdade. O perigo da denúncia da incoerência alheia é o alçapão da nossa própria incoerência. Apetece glosar a velha máxima: o que não tiver pecado que atire a primeira pedra.

Dizem por aí que os manifestantes de aluguer subvertem a cidadania. Pelo contrário: se tanto se fala da demissão da cidadania, os incentivos financeiros para a participação em manifestações de rua podem ser o lenitivo para uma tomada de consciência individual, para virar a página na cidadania adormecida que se instalou. Pretexto para um economista sentenciar: é o lado positivo do dinheiro.

26.1.07

O lamento


As angústias perenes, no ressarcimento dos erros cometidos. O lamento vindica o seu lugar. Confunde-se com a introversão onde impera humildade. Pelo lamento expia-se um arrependimento, sobrepõe-se o humilde reconhecimento dos erros que sobram do passado. E, no entanto, quantas vezes o lamento é um grito lancinante perante o desespero que corta a respiração? Quantas vezes, apenas um último fôlego antes de os olhos acordarem para a realidade que desagrada?

Num lamento, escondem-se as lágrimas que nunca chegaram a ser gastas. A combustão das lágrimas aprisionadas nas pálpebras, mercê da desditosa vergonha que esconde dos outros as lágrimas que anseiam soltar-se. Há quem diga: os lamentos são o substituto das lágrimas, o lugar onde as mágoas se expiam, um paliativo para a amargura dolente.

Mercantilizam-se, os lamentos. Estranha condição, esta. Acha-se que os lamentos são acto da mais profunda individualidade do ser. Um espelho onde apenas reflecte uma imagem – a imagem da pessoa que se entrega no pungente acto que desagua em lamentos vários. Porém, traficam-se lamentos. Pois há na exibição dos lamentos uma mensagem para o exterior. Um correio invisível, sinais sublimes dedicados a outrem. Mostrar a alguém que o que está feito seria desfeito houvesse o tempo de regressar ao passado, antes do acto consumado que motiva o lamento. E assim caucionamos ou sancionamos os lamentos dos outros. Sobretudo quando notamos que eles encerram os sinais que só nós podemos descodificar. Mas também quando interferimos nas lamentações que passam na linha ao lado.

Há almas torturadas viciadas no lamento. Parece que erram por sistema, só um pretexto para o encontro marcado com o lamento regenerador. Sabem que limpam o espírito das impurezas que descobrem o lamento. Impuros outrora, o lamento reencontra-os com a indulgência. Andam em círculos, portanto. A errante condição dos nómadas que vagueiam entre os apeadeiros que escolhem no critério puramente aleatório. De umas vezes acordam com o travo amargo, investindo a lamentação expiatória. Outras vezes aceitam o caminho traçado, até que um mergulho na consciência mais profunda desperta os sentidos para a percepção do lamento. Viciante exercício, procuram o lamento como penitência do passado, de todo o passado que vem embrulhado numa indiferenciada parede betuminosa que ameaça, indestrutível, destruir a memória.

O lamento sistemático é um estupefaciente. Apenas um pretexto para esconder as manchas dos tempos idos. Uma encenação que traz a ilusão dos praticantes da lamentação: retornam ao mesmo lugar de onde partiram para mais tarde arribarem ao pináculo do lamento. De erro em erro, de lamento em lamento. O lamento é o fio condutor que tece o caminho até ao próximo despiste.

Teria lógica dizer: os sacerdotes dos lamentos não são cultores da teimosia. Esses, mergulhados no convencimento da sua messiânica aura, nunca se ajoelham no humilde resgatar do erro cometido. São penhores das suas certezas inabaláveis, onde o lugar ao erro não existe – ou, se existe, fica refugiado no mais profundo do seu íntimo, incapazes de reconhecerem aos olhos dos outros o passo em falso dado algures, num tempo já recolhido. Estão divorciados do lamento, palavra que arremetem contra a boca arrependida dos outros a quem denunciam erros passados. O lamento existe para os que não se envergonham da humildade, aqueles que sabem que o erro pertence à rotina das coisas. Sobra do mercado dos lamentos a diferença entre a casta dos arrogantes que passeiam a indisponibilidade do erro e os outros, condenados à revalidação da bússola interior, através do perdão do passado que entretece a ponte com os dias vindouros.

Há no lamento um regresso ao passado, onde as coisas foram erradas, as palavras ditas arrependidas, os actos cometidos envergonhados agora. Pelo lamento, um mergulho no passado como aprendizagem do porvir. Mas sempre com a disponibilidade para as impurezas que hão-de marcar reencontro, mais adiante, com outros lamentos. A humildade constante para empossar o lamento incensa os dias ainda desconhecidos. Por ele, a recusa do endeusamento de si, a clarividência para receber de braços abertos os erros, intencionais ou não, que urge admitir. No lamento, a grandeza maior dos espíritos.

25.1.07

Paz (roteiros)


Não é da paz que nidifica no silêncio das armas. Mirífica, mas uma utopia sem sentido. Hão-de homens existir e dessa paz só ouviremos ecos nos líricos cantos de um devir ideal, tão ideal como impossível.

Há paz nos espíritos apaziguados. Há paz quando um ser não tropeça na volúvel opinião, que oscila com os ventos batidos de um quadrante ou de outro. E paz, quando sem contar apetece furar a rotina e terminar o dia a contemplar as cores garridas do pôr-do-sol, ver como o sol se deita nas longínquas águas do oceano profundo. Paz é quando as mãos se entrelaçam, apenas para sentirem a aveludada pele da pessoa amada. E paz regressa aos sentidos quando se escuta a palavra singela dos pais, os esteios da nossa existência.

A paz também se faz com o refrigério dos espíritos atormentados. Se a lucidez se ausenta e as miragens toldam os olhos, quando parece que vemos fantasmas acastelados no horizonte que acomoda a vista, vivemos entregues aos caprichos de uma feérica tempestade que sobressalta o sono. Perdemos o rasto do sossego interior, acossados pela demência que empurra para um precipício tão aterrador. Há paz na batalha que lutamos contra os demónios que se reanimam por dentro de nós. Paradoxal seja: há paz no ensaio que fazemos para exorcizar os fantasmas tão corrosivos. O discernimento da intranquilidade leveda a paz que emerge, como se fosse um reflexo condicionado, para contrariar o esconso e plúmbeo lugar onde a fraqueza nos remeteu.

Chegará sempre um dia da libertação. O dia em que todos os demónios deixam de ciciar ao ouvido, o dia em que as cores retornam à sua nitidez, as formas recuperam a textura de outrora. No êxtase da emancipação está o cadinho maior da paz. Tão grande, tão assustadoramente enternecedor, que se consome num instante tão fugaz; a paz evapora-se entre os dedos que a tentam capturar num retrato que ao menos faça as vezes de recordação. É um fluxo de sabores contraditórios – entre a ventura do arpoar da paz e a súbita desorientação quando, já entronizada, entra no altar da rotina.

Pela boca entram os sabores – ora doces ora amargos, um refluxo contínuo de dias luminosos entrecortados por dias sombrios. Não que estes tragam um sinónimo de tristeza e, com ela, a abdicação da paz que desfila diante dos olhos. Há nas sombras projectadas, nas nuvens tão carregadas de uma chuva impiedosa, uma insondável pulcritude que preenche os corpos. A paz encontra-se quando vamos ao encontro do lado escondido da feiura, ou do sofrimento, ou da resignação. Ela é a presciência da dignidade pessoal, o tão vulgar olhar no espelho sem padecer de vergonha. A demissão das responsabilidades é a maior guerra que o eu pode detonar em si mesmo.

A paz é poder viver. Em respeito com quem somos. Caminhar pelas ruas e poder olhar para os edifícios, fitar as faces dos transeuntes, demorar o olhar nas árvores que coabitam com o ar irrespirável da cidade. Ou refugiar no santuário da solidão, sentir o perfume que os montes e vales exalam, o ar tão leve que, dir-se-ia, cauciona a levitação dos corpos. Ter a paz é arte que não entra no cardápio das dificuldades que, obstinadas, amesendam quase todos os dias. Às vezes esquecemo-nos da paz que vagueia, dormente, pelas veias fora. É quando regressam os escuros fantasmas, os tiranetes da antítese da paz que eterniza uma vida condoída.

De resto, a paz é um hino à simplicidade das coisas. Esmiuçamos o racional que ressalta a superioridade humana e caímos na armadilha da complexidade que derrota a paz. O pior é que, aos que conseguem diagnosticar os males que embaciam a paz, à correcção do roteiro que encaminhou por caminhos cheios de espinhos segue-se a recaída. E parece que somos vigilantes sacerdotes de uma divindade que renega a paz. Endeusamos a turbulência interior, que envelhece antes do tempo. Ao menos, a consolação de saber quando a paz se ausenta. E resta a força para derrubar os demónios que empurram a cabeça para as águas fundas, no doloroso feito de resgatar a paz calmante quando, no limite da respiração sustida, nadamos em direcção à superfície.

A paz reside no indivíduo. Forjar uma paz dos povos é insidiosa aleivosia ao cancioneiro pacífico. Os feitores da paz, de tanto emudecerem a palavra na sua boca, gastam-na e deixam-na sem utilidade. São eles, sem darem conta, os arquitectos das guerras que despojam a paz dos indivíduos. Eis o testemunho de cepticismo pelos pastores da paz dos homens.

24.1.07

A generosidade pecaminosa: donativos acima de 500 euros pagam 10% de imposto


É-nos ensinado, desde tenra idade: a generosidade é uma virtude. Dar é um bálsamo para a alma. Redenção interior, sinal da entrega ao próximo, uma mostra de como a pessoa presenteada diz muito a quem dedica a oferta. Haverá, decerto, o lado negativo do sinalagma: muitos dão por sentirem que esse acto é um dever. Agem contrariados. Será a expiação do ónus com um fito mais longínquo – ganhar a consideração da pessoa presenteada, ou apenas desonerar-se do dever de presentear, quiçá mais um passo no tão ambicionado trajecto rumo à dimensão celestial que chega com a morte.

O que este mundo tem de belo é o constante lugar à surpresa. Seria um lugar enfadonho para viver se tudo fosse previsível, se todos os passos fossem desaguar aos mesmos destinos, com paragem nos apeadeiros de sempre. De vez em quando há imponderáveis. Que nem chegam a ter a conotação negativa do imponderável: de tão patéticos, tudo o que conseguem é motivar um sorriso cínico. Não são imponderáveis, são actos de uma tremenda encenação cómica em que vivemos mergulhados. Este lugar é uma piada contínua.

Sabemos agora que a nossa generosidade com os outros passa a ser taxada. Quem fizer donativos acima de 500 euros está a envolver um terceiro actor na sua generosidade. Pois o destinatário do donativo é coagido a entregar 10%, a título de imposto de selo, nas mãos do faminto Estado. Tento perceber como isto vai funcionar: se vou a um casamento e ofereço um cheque de 500 euros aos noivos, o fisco espera que os nubentes exerçam o seu dever cívico de declarar a oferenda, descontando 10%. Eis a primeira perplexidade: o ministro das finanças está a contar que todos os cidadãos que forem agraciados com a generosidade alheia voluntariamente se declarem recebedores de um donativo. Como todos temos uma apurada consciência cívica, por um impulso natural colocaremos nas mãos do fisco 10% das prendas pecuniárias que recebermos. Não sei se podemos chamar a esta crença do ministério das finanças uma ingenuidade infantil.

Depois há que perceber se a pessoa que fez o donativo aceita pacificamente que 10% da maquia vá parar aos cofres do Estado. Se um magnânimo tio puxa do livro de cheques e distribui 500 euros por cada um dos três sobrinhos por alturas do natal, este é um acto bilateral, um presente do tio a cada um dos sobrinhos. Doravante o tio herda um quarto sobrinho ilegítimo, o fisco (e se faz sentido aqui a qualificação de “ilegítimo”…). Quando os sobrinhos confidenciarem ao tio que um perverso funcionário do fisco lhes comunicou a obrigação de pagar cinquenta euros a título de imposto de selo, o tio poderá ficar indisposto. E perguntará se já não basta o infindável rol de impostos e taxas que, por tudo e mais alguma coisa, subtraem o seu rendimento.

Ainda temos que contar com outra vertente inusitada: o Estado arroga-se ao direito de reter uma percentagem dos donativos. Uma inadmissível intromissão na esfera individual. E um roubo ao que se pensava ser uma virtude – a generosidade. À força, o Estado entra como terceiro parceiro numa relação que se julgava a dois (entre quem oferece e quem recebe o donativo). É o Estado furão, a vigiar de norte a sul quem fizer donativos. Quando o donativo chegar às mãos do felizardo, mesmo ao lado está o cobrador de fraque com a mão estendida, à espera da sua maquia (os 10%).

Isto é socialismo! No pior que o insólito noticia. Afinal a generosidade tem algo de pecaminoso. De outro modo, estaria isenta de impostos. Como cidadãos exemplares, espera-nos o dever de contribuir com um modesto pecúlio (“só” são 10%, podia ser pior…) dos donativos que recebermos. O senhor ministro das finanças estará a contar com mais um acto de bufaria tão típico da pidesca mentalidade que este governo tem revelado: quem for bondoso deve dar conta do acto de generosidade para que o fisco possa bater à porta de quem recebeu o donativo, de mão estendida.

Ficam as lições de tão patética medida. Primeiro, a desmotivação da generosidade. Se tantas vozes que pastoreiam a moral e os bons costumes acusam a emergência do egoísmo e a materialização das relações humanas, este estúpido imposto decerto vai diminuir os actos de generosidade. Segundo, a generosidade deixa de ser uma virtude (ou então temos um Estado abutre, que canibaliza a generosidade alheia). Assim o decretou este socialismo de pacotilha que invade todos os poros da nossa existência.

23.1.07

A sagração do Inverno


A dolorosa demora do Inverno, quando as folhas do calendário já o anunciaram há muito e ele tarda algures. As cansativas temperaturas suaves, ventos de sudoeste com o cheiro da maresia, trazendo os salpicos do Atlântico que se esfarela na costa. Um mês depois, só um mês depois, os primeiros ares da invernia. Dizem que a culpa é do aquecimento global. Com o dedo autofágico do Homem. Para um nostálgico da invernia fria e duradoura, daqueles dias da chuva que ecoa os flocos de neve que já chegam derretidos ao solo, um trágico destino da humanidade.

Gosto do Inverno de antanho. Como gosto de me perder nas ruas a sentir o vento gélido a bater na cara, as mãos desnudadas para agarrar todo o frio que me cerca. Há neste frio glacial um palpitar purificador. Não consigo decifrar as razões. É apenas uma pulsão que esbraceja dentro de mim, desperta os sentidos para a captura dos pequenos detalhes que a pureza glacial desembacia. É uma suave loucura que me invade, temperaturas que põem o corpo a tiritar e, contudo, o corpo impelido a errar pelas ruas, só para se apoderar do frio.

É disto que se trata: tomo posse do frio. Desenganem-se os que acham que é o frio que toma conta do meu corpo. Ao contrário. Podem os lábios enrijecer, dobrados pelo cieiro cortante. Ou as mãos lacerarem-se na nudez, pela teimosia da recusa das luvas protectoras. Ou a cabeça vestir um farto capacete de frio, os cabelos elevados à condição de gorro. Ou os olhos, humedecidos pelo vento rasante, soltarem umas lágrimas, que são lágrimas de bem-estar. Posso fitar o espelho e ver uma cara alvoraçada pela alvura que o frio coloriu, com o nariz enrubescido pelo entesar gelificante. Nada é sacrifício que imponha desdenhar a passeata na companhia do frio.

Se há defeitos na minha cidade, um dos maiores será o desencontro com a neve. O frio é só uma amostra da invernia que me apraz. Falamos de uma invernia imberbe, que um par de graus negativos já é motivo para os holofotes das notícias. Mal habitados estamos, corpos tenros para os rigores árcticos que raramente vêm encontrar repouso nestas terras compulsivamente quentes. As correntes dos mares são um bálsamo para os queixumes dos exorcistas da sombria invernia. Afastam os ventos glaciais para outras latitudes. Temos direito a uns solfejos tímidos, poucos dias no ano, uma amostra dos rigores que não impedem a vida nas distantes paragens causticadas pelas neves que se eternizam semanas a fio.

A janela à minha frente está virada a norte. Passam-se dias e dias, semanas incessantes, os olhos erguem-se e notam que as nuvens chegam do lado errado – ora sul, ora oeste, sempre na avisada temperança climática que adia o frio terapêutico. Não me recordo de um ano com invernia tão vagarosa. Quando os olhos espreitam para além das pálpebras cansadas, revigoram-se com as nuvens empurradas pelos ventos que chegam do Árctico. É o Inverno que por fim se espreguiça, desperta do sono demorado. As nuvens entrecortam-se com o céu azul, mas de um azul diferente, diria mais nítido. A matriz do límpido perfume do frio.

Um lamento: que sejam fugazes episódios de frio. Gostava que a minha cidade fosse abençoada mais vezes pelos leves flocos de neve. Que a paisagem se tingisse de um branco resplandecente no dia seguinte ao nevão, com a manhã solarenga a avivar a alvura circundante. Para poder passear nos parques e demorar a vista nos lagos gelados, com a vítrea pedra de gelo a ecoar os pálidos assobios dos pássaros resguardados nos grossos troncos dos álamos envelhecidos.

Retenho bem viva a memória de um Janeiro dividido entre muitas cidades europeias, no meio de uma onda de frio que fez lembrar os Invernos de antigamente. Os sete graus negativos de Amesterdão, adensados pelo vento que rasgar até ao mais fundo dos duros ossos do corpo. Os canais gelados aprisionavam as embarcações ancoradas no cais, na única utilidade de serem adereços de um postal de Inverno. Ou o largo leito do Danúbio em Viena transformado numa estrada de gelo, com pessoas a ousarem a travessia pedonal entre as margens. E a neve acumulada em Berlim, a bela e traiçoeira neve que, umas horas depois, enregela até os pés protegidos por umas couraçadas botas.

As saudades da invernia que semeia ventos glaciais são o sinal do hirsuto esquimó mergulhado nas minhas profundezas. O frio balsâmico: o intenso inspirar do ar, a dor nítida que enche os pulmões e perpassa as cordas vocais, a dormência das extremidades anestesiadas pelo frio, os olhos petrificados pelo frio dilacerante. Nada disto traz maleitas. Apenas purificação do ser, curtido para acolher o sufocante calor que se demora mais tempo.

22.1.07

Da desonestidade intelectual: o Bloco de Esquerda aderiu à liberdade individual e outras pérolas


É a desonestidade intelectual que faz a ponte entre os textos separados pelo fim-de-semana. O último teorizou sobre a desonestidade intelectual como expressão máxima das campanhas eleitorais onde as militâncias se empenham até ao tutano. No texto de hoje apresento quatro provas de como a desonestidade intelectual está ao serviço das causas em confronto.

Primeira prova, a mais deliciosa: João Teixeira Lopes, dirigente do Bloco de Esquerda, marchou pela marginal do Porto empunhando a bandeira dos adeptos da despenalização do aborto (mais a necessária pochette a tiracolo). Emblema partidário, o microfone tinha que se estender diante da sua boca. Avançava, passos compassados, desembrulhando o raciocínio: ser partidário da liberalização do aborto é uma questão de liberdade individual. No tempo de antena que lhe foi dedicado, dissertou sobre a liberdade individual, expressão que empregou várias vezes.

Não fosse este um mundo tão insólito, teria ficado boquiaberto ao ouvir um dirigente do Bloco de Esquerda a largar âncora na liberdade individual. Não fossem as campanhas eleitorais um monumento ao despudor, ou instantes onde o oportunismo tem o seu pináculo, e seria levado a acreditar que estava mergulhado num sonho: Teixeira Lopes a defender a liberdade individual! Aos que andarem distraídos, resgatem o ideário do Bloco de Esquerda e a sua retórica política. É suficiente para arranjar provas abundantes de como liberdade individual e Bloco de Esquerda estão nos antípodas. O oportunismo transforma tudo. Nestes dias em que o Bloco de Esquerda está activamente envolvido no referendo, o argumentário da liberdade individual – para dotar cada mulher grávida da soberania do seu corpo, sem mais interferências – é a maior das conveniências. Só que, no resto, liberdade individual não conjuga com Bloco de Esquerda.

Prova número dois: o pároco de Castelo de Vide ameaçou os paroquianos de excomunhão caso se abstenham ou votem “sim” no referendo. Invocou preceitos do Código Canónico e puxou lustro ao seu doutoramento em direito canónico para passar a imagem de homem cuja sapiência não pode ser questionada, ou a chancela da pretensa autoridade moral. Assim prosseguem pastores da igreja na senda do habitual: pastoreiam as consciências individuais, sem perceberem que o domínio da consciência de cada indivíduo é porta que a igreja não deve franquear.

O cura alentejano nem sequer percebe o manto do ridículo que sobre ele se abate. Será um holograma da inquisição perdido em pleno século XXI? Perceberá que os católicos já não são uma massa acrítica e ordeira, temente da ira divina caso as determinações do clero não sejam acatadas? Confiará o padre que os seus paroquianos lhe revelem todos os pecadilhos, até aqueles que entram no reduto do inconfessável? Depois da ameaça que fez, acredita que vai mudar a convicção de voto (ou de não voto) dos membros do seu rebanho? Não lhes deu um enorme incentivo para resguardarem o voto no seu íntimo, sob pena da fúria do sacerdote se abater sobre as ovelhas que tresmalharem e, na hora da morte, um enterro católico lhes ser negado?

A terceira prova regressa ao terreiro dos adeptos da liberalização do aborto: um ilustre advogado, muito empenhado na defesa dos direitos humanos, lembrou-se de uma metáfora disparatada para rejeitar um dos principais argumentos dos adversários do aborto. Como estes continuam a martelar na tecla do “embrião que é ser humano”, António Pinto Ribeiro saiu-se com esta: “não é o ovo que tem direitos, é a galinha”. Só falta agora um menino do coro da direita conservadora sair da toca a cavar mais fundo na indignidade, contra-argumentando: e o que fazer com os embriões assassinados, um omeleta?

A prova derradeira, na boca do beato João César das Neves. Em seminário dos detractores do aborto, puxou de uma das suas habituais hipérboles e concluiu, brilhantemente, que se o “sim” vencer, o aborto será uma vulgarização. Tão banal como os telemóveis, acrescentou. Podíamos ir mais longe no chorrilho de disparates e assegurar que o descarrilamento da virtude que a sociedade ocidental e materialista testemunha (para desgosto de beatos como César das Neves) fará com que casar e divorciar seja tão banal como comprar uns sapatos: compram-se novos, na excitação do momento; e deles nos desfazemos quando estão gastos, ou já nos cansámos deles.

Estes dias de dialéctica furiosa entre os dois lados da barricada são o terreno ideal para observadores do comportamento humano. De todos os lados, podiam vir até nós para estudar como a pessoa se entrega nos braços da estupidez ao militar com exuberância irracional numa causa. Aqueles foram apenas quatro momentos num mar de disparates que se repete todos os dias. Impõe-se a migração mental para outros quadrantes, portanto.

19.1.07

Sai um curso de português

Da desonestidade intelectual


Detesto campanhas eleitorais. Traduzem a democracia presa aos seus paradoxos. Da democracia elogia-se a capacidade para cruzar diferentes opiniões em discussões que se querem abertas e francas. A voragem da vitória e a ânsia de mostrar a superioridade dos pontos de vista levam frequentemente as pessoas a confundirem retórica com desonestidade intelectual.

Em qualquer acto eleitoral, as partes envolvidas esforçam-se por cativar eleitores. Seduzem-nos: com o pacote de promessas, um extenso cardápio das realizações que ficam agendadas caso sejam os escolhidos pela maioria. Os debates multiplicam-se. Acredita-se que os debates contribuem para um eleitorado informado, consciente, responsável. Tenho para mim que estes debates encerram em si o contrário do que deles se espera. Os requintes retóricos, aliados à bem estudada imagem que os especialistas compõem num candidato silicónico, são a arte do embuste em letra maiúscula.

O que os debates proporcionam é um rol de afirmações bombásticas, acusações aos adversários, truques rasteiros que não andam longe do terrorismo intelectual. A audiência assiste. Os que não se deixam iludir pela prestidigitação retórica conseguem discernir o candidato menos aldrabão. Se é que são influenciáveis pelo debate, retêm um princípio de acção: vão votar no candidato menos mau. A extensa maioria que ficar presa ao debate e se inebriar com as cambalhotas argumentativas dos candidatos, aplaude os actores sem chegar a discernir como diante dos seus olhos passa uma sórdida encenação, um mundo faz-de-conta, com políticos de plasticina que se engalfinham uns nos outros e rivalizam nas palavras vãs. O mais medíocre emerge na arte da sedução do eleitorado hipnotizado pelo debate que espalha as ilusões.

Olhando às promessas, o pai-nosso das eleições, campeia a desvergonha. Com a urgência de descobrir as mais impossíveis promessas, aquelas que dois olhos bem abertos percebem que pertencem ao domínio do irrealizável, as campanhas eleitorais transformam o futuro num paraíso. Às vezes ponho-me a pensar: se, por um toque de magia, todas as promessas arquivadas em campanhas eleitorais tivessem encontrado realização, seríamos dos países mais avançados do mundo.

As coisas pioram quando a campanha eleitoral se enquadra num referendo. E, pior ainda, quando o referendo desafia as pessoas a dizerem “sim” ou “não” a uma matéria de consciência individual. Caímos na armadilha do referendo à despenalização do aborto (ou, com o oportunismo semântico do governo, “interrupção voluntária da gravidez”, para desonerar a conotação negativa da palavra “aborto”). Caímos nas causas fracturantes, ademais. Não sou adepto dos consensos, do unanimismo fácil que nos encarreira para o vértice único do pensamento correcto. Apesar do meu desalinhamento com os consensos que ressoam letargia, cansa-me esta divisão entre o “sim” e o “não”. Não pela divisão em si: quanto mais facções, melhor; mais se enriquece o debate, na pluralidade de opiniões. O que me cansa é o acantonamento em apenas duas facções. No fundo, em vez “do” consenso temos dois consensos. Que se radicalizam à medida que se aproxima a data do referendo.

De um lado e do outro, crescem os argumentos que pisam o limite do impensável. Aquecem os espíritos, espicaçados pelas afirmações que ecoam do outro lado da barricada. Amontoam-se as manifestações de irracionalidade. Argumentos deploráveis aparecem com o embrulho da desfaçatez, como se fossem argumentos plausíveis. A audiência é convocada para escutar tais argumentos sem sequer questionar a respectiva honestidade intelectual. De ambos os lados, aparecem exacerbados militantes das causas que dizem as maiores patetices, tentando arrastar a audiência para o lodaçal onde se afogam sem perceberem.

Haverá, nesta campanha eleitoral, o mérito do refrescamento visual: não somos agredidos pelas mesmas caras dos profissionais da política de sempre que desfilam em todas as campanhas eleitorais. Há caras novas, anónimas figuras que emergem de um dos incontáveis movimentos de apoio ao “sim” e ao “não”. Caras novas, mas mensagem velha, retórica retorcida e cansativa. Os mesmos truques baixos que aprenderam com a classe política. E muita raiva destilada: argumenta-se sobretudo em desprimor da causa contrária. Esta campanha eleitoral distingue-se pelo discurso destrutivo. E pela cândida exposição de opiniões que são campeãs da desonestidade intelectual.

Alguém me diz: quantos dias faltam para o referendo?

18.1.07

E de repente, tudo estranho


Os dias de cansaço expõem as agruras da alma. Os sentidos perdem o norte, espezinhada a bússola por um passo desastrado. Uma desagradável sensação de estranheza apodera-se por dentro. Toma conta das veias, do sangue volátil que parece estagnar à espera que regresse a banal normalidade. Nesses dias do triunfo da estranheza das coisas e das almas, as cores esbatem-se. Regressa um antiquado filme a preto e branco. Um solfejo frio invade as entranhas; mas não é o frio que vinga, nem a dolorosa tempestade que corrói os ossos. Apenas o abúlico despertar para as caras desconhecidas, a começar pela própria.

As frases dos livros parecem desarticuladas. Os animais são comportamentos erráticos. Os óculos embaciados iludem a seca imagem que desliza diante da vista. Havia também chuva, sem que pairassem no céu nuvens carregadas que anunciam precipitação. Ignoram-se as pessoas queridas, porque já são queridas e não carecem afectos. Sabe-se que está errado, mas um poderoso turbilhão empurra para onde não queremos ir. Fazemos o que não queremos, na compungida laceração da carne. Os dedos apertam-se e não se sente nada. As mãos enrugam-se nos cabelos frios, compondo a melena desgrenhada. Ao olhar no espelho, a melena teima descomposta. Os dedos passearam pelos cabelos em vão.

Os alimentos perderam o sabor. A água já não mata a sede. As águas dos rios, dos lagos, dos mares adormeceram num protesto pelo absurdo que grita a cada instante. Os olhos percorrem o mapa da estranheza e não querem perder-se no sono que seria a contemplação dos sonhos de outrora. O cansaço consome até a vontade de dormir. De todos os lados aparecem pessoas que erram sem destino, como se fossem autómatos com personalidade esvaída. Dão passos maquinais, trazem rostos inexpressivos, os lábios cerrados e a respiração meticulosamente compassada. Comandados por uma pulsão guerreira, evitam o contacto com os demais que envergam as suas roupas negras e prosseguem um caminho interminável, rumo ao vazio.

Em toda esta estranheza, as ruas estavam desertas de veículos. Entregues às pessoas que persistiam numa romaria insólita, na indiferenciação do vestuário. Quem sabe, na indiferenciação dos vultos anódinos que vegetavam na perseguição das suas sombras. Perdidos os limites das coisas, desapossados do saber, eram cognatos de uma lúcida loucura. Teriam perdido tudo: as memórias, o passado, as pertenças, os afectos. Vagueavam na insolência dos monstros emparelhados com a ensandecida janela. Alguns de cigarro na mão, levando-o à boca e simulando os tufos de fumo, coreografia espúria pelo cigarro apagado. Tudo encenado nos passos trocados pelos eternos transeuntes. Eles também desconhecedores do descanso, dantes balsâmico.

Um enxame de gente apinhava as grandes cidades. Vinham dos campos, das vilas e cidades pequenas, dos dormitórios onde já não havia sono a cumprir. Amontoados na cidade, demorando-se nas avenidas largas onde ainda não se atropelavam. Alguns metiam-se pelas ruelas esconsas, aventuravam-se em becos de onde a turba havia furtado o sinal de rua sem saída. Ao verem que a rua terminava num alto muro, estancavam a marcha e ali ficavam, horas e dias, a olhar para o alto. Sabiam que o porvir era do lado de lá do muro, nem que fosse um baldio desinteressante. Tomados por uma doentia inércia, não eram capazes de sair do estagnante dilema.

Os dias corriam o seu sentido, com os ponteiros do relógio acertados para a marcha convencionada. Os dias seguiam-se às horas acumuladas. No entanto, os corpos pareciam ter hibernado. As unhas não cresciam, os cabelos dispensavam escanhoamento, a pele permanecia fresca, não se ressentia do banho ausente. Era um tempo traiçoeiro. O condão de decepar os conflitos, no inexistente relacionamento. Era um mundo resumido ao extremado individualismo. Mas um tempo traiçoeiro: na ilusão dos corpos que pareciam ter entrado em agnosia, a crença que a velhice jamais chegaria.

Desengano. Os ponteiros do relógio só pareciam imortalizados, pura ilusão de óptica dos acometidos pela estranheza. Quando dessem conta, quando voltassem a fazer uma visita ao espelho, notariam todas as rugas marcadas, os cabelos brancos ou as calvícies fátuas, os olhos cansados que já não viam com nitidez. Só então os corpos se desprendiam da letargia que os amordaçou tanto tempo. Todo o tempo, entregues nos traiçoeiros braços de um fariseu da eternidade. A estranheza era tanta que nem as promessas de perenidade semeavam tergiversações. Ao despertar do inconsciente estado de hipnotismo, a dolorosa visão do fim, do outro lado da rua que pedia para ser atravessada.

17.1.07

Por onde andas, ó corrupção?


Está é uma terra que guarda intermináveis segredos. Há coisas que toda a gente conhece, sussurradas de ouvido em ouvido, com alguma maledicência à mistura, há que convir. Mas não se perca o fio à meada. Quem não fica aturdido com certas decisões dos eleitos, um mostruário do impensável que se mistura com inaptidão? Quem nunca foi brindado com estórias de cumplicidades entre autarcas, construção civil, o podre mundo do futebol, como os seus agentes – que tantas vezes se confundem num só – enriquecem absurdamente? Essas estórias passam na tela; e, contudo, no rodapé vem a legenda, repetitiva: não há corrupção nesta terra.

Locupletar à socapa, de norte a sul, quando o poder lhes cai nos braços. Cresce uma comandita que alimenta a rede, eles também à mercê de umas migalhas desta dolosa economia subterrânea. Os outros, os que ficam à margem do banquete, limitam-se a pagar os impostos, sacrificados com o lado dos deveres que também é cidadania. Os actores da corrupção passeiam-se orgulhosos dos feitos. Sabem que as estórias de corrupção jamais serão provadas em tribunal. Quando alguém ousa levantar o véu da corrupção, pleito marcado para tribunal: o acusado de corrupção vira a acusação às avessas e incrimina o acusador de difamação. Salda-se o pleito com a glorificação do acusado de corrupção, na patente impossibilidade de encontrar o rasto às provas da corrupção.

É uma doença congénita. Uma maleita traiçoeira, porque de todos conhecida mas por ninguém denunciada. Apenas suspeitas. Apenas sinais exteriores de riqueza que o salário do detentor do poder não explica. E perversas cumplicidades, sempre os mesmos que tomam lugar nos banquetes – as mesmas empresas de construção que ganham concursos públicos; contratação de funcionários com critérios obscuros, onde fala mais alto a militância partidária ou o empurrão dado pela pessoa certa; os grandes empresários que movem as suas influências para as decisões políticas estratégicas serem do seu agrado, numa intimidade que desmerece o rótulo de iniciativa privada que deviam ostentar.

Com o mal espalhado, quase todos assobiam para o alto. Com a agravante do mal se enraizar mais ainda, contaminando até aqueles que sempre recusaram empestar a podridão. Chega o momento em que de tantas vezes ficarem para trás, percebem que têm que fazer o jogo instalado. Aos poucos, a corrupção tentacular engaveta mais e mais pessoas que lhe tinham sido imunes. O vírus espalha-se depressa. Encamisa o país, amordaçado por uma corruptela que ganhou o estatuto de coisa congénita.

Se alguém rompe a modorra e tenta furar a maré, só obstáculos pela frente. Quem oferecem os obstáculos é porta-voz da confissão da corrupção enraizada. Um deputado socialista desdobra-se em vãs tentativas de aprovação de leis que tentam domar a corrupção na política. O deputado é do partido do governo. A sua própria bancada parlamentar é a primeira adversária dos esforços de moralização da coisa pública. No mínimo, é motivo para alimentar suspeitas: de que está à espera a bancada socialista para abençoar a iniciativa anti-corrupção do deputado Cravinho? A pergunta pode ser formulada noutras variantes: de que têm medo os deputados socialistas? Que rabos-de-palha falam mais alto?

Talvez a proposta do deputado Cravinho tenha feito mossa nos meandros do governo, a atestar pela reforma dourada e longínqua que o governo lhe ofereceu – um lugar na administração do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). A pessoa mais conveniente para o lugar. Não a que tem o melhor perfil, mas a que convém arrumar para um lugar esconso, de onde deixará de ser a voz incómoda para os instalados grupos de interesses que emparelham com a classe política. Há actos que são a denúncia evidente das intenções dos seus autores.

A menos que tudo isto seja uma – mais uma – encenação de que a classe política é perita. As interrogações desfilam, incessantes, diante dos meus olhos: se Cravinho estava empenhado em combater a corrupção, porque aceitou o lugar no BERD? Teria Cravinho feito o papel do deputado rebelde, que vem mexer na imundície instalada, passando a imagem de que os socialistas estão preocupados com a corrupção? Uma no cravo e outra na ferradura? Dos políticos estou habituado a esperar tudo, especialmente no pior registo. E, quando há dias vi um socialista primeiro-ministro espanhol a fazer um humilde acto de contrição diante do parlamento e dos eleitores, reconhecendo que errou na negociação com os terroristas da ETA, só pude desconfiar de encenação. Lá como cá, um chorrilho de encenações, a arte da imagem composta que oferece uma classe política falsa.

A derradeira perplexidade é a mais perturbante: os deputados socialistas continuam a colocar armadilhas no percurso da lei anti-corrupção que Cravinho pretendia discutir. Se a lei não se aplica aos crimes passados, mas apenas aos futuros, fermenta a suspeição de que há muita corrupção pela frente que não pode ser desperdiçada. Muitas oportunidades que a lei iria cercear. Por vezes, mais que as palavras e os actos, as omissões são mais reveladoras.

16.1.07

A prosápia da Assembleia da República: o desplante da bandeira


Estão em todo o lado. São formiguinhas que porfiam, com a ambição de se livrarem da sua pequenez; tornarem-se conhecidos. Há gente que treina demoradamente os músculos inferiores das pernas, que há carência de se porem em bicos dos pés todos os dias. Só assim se fazem notados. Só assim ascendem – no trabalho, na carreira, na importantíssima escala social, tarimbados no tráfico de influências, as pancadinhas nas costas que tudo resolvem. O pulsar mais alta da mediocridade. À míngua de méritos próprios, desfazem-se dessa fraqueza mudando as regras a seu favor.

Há gente desta em todos os lugares. Gente cheia de ambição, sufocada pela ambição. O lugar onde muitos se contaminam com as práticas medíocres. Rivalizam entre si, esmeram-se para refinar a mediocridade com direito a resultados estrondosos. Mergulhados na rivalidade, puxam uns pelos outros, numa deriva sem retrocesso que nos abeira de um precipício sem fundo. Os mestres da mediocridade olham para o lado e observam o sucesso de outros ainda mais mestres. Incentivo para puxar lustro ao ofício e empurrar a bola de neve que segue, velocidade alucinante, ladeira abaixo.

A mediocridade presunçosa costuma andar atrelada à mania das grandezas. Que é a confissão do inesperado êxito. Por eles próprios admitirem que fosse apenas o mérito premiado, não haveria lugar a tais mordomias. Por isso, usufruem-nas com ostentação. Receosos que sejam regalias efémeras, afocinham e lambuzam-se no opíparo manjar que desfila diante dos seus olhos. Fazem lembrar esfaimados mendigos agraciados com uma refeição mirífica: a sofreguidão com que devoram o repasto, não vá, por magia, a comida evaporar-se.

Por mais alto que cheguem, há sempre mais um degrau que fica por ascender. Outra meta idealizada, nem que seja no recato dos sonhos, as horas em que a mente plana, assoberbada, numa viagem fantasiosa. É o espaço onde estas personagens que aspiram, no máximo, a um papel secundário se colocam no triunfante pedestal, com os demais na prestação da ubíqua vassalagem. No seu imaginário, são imperadores do seu império particular, onde só eles existem.

É disto que me lembro ao tomar conhecimento da invenção de uma bandeira para a Assembleia da República. Recordo-me de ler a notícia, que terminava de maneira lapidar (e cito de cor): “o presidente da Assembleia da República tem direito a ostentar a bandeira no seu veículo oficial”. Já o adivinho, garboso, sabedor que é a figura número dois do protocolo do Estado, a passear-se pelas ruas de Lisboa, olhar altivo, ciente das genuflexões que o povo fará de cada vez que tiver a felicidade de se cruzar com o automóvel que transporta sua excelência. Que interessa se o parlamento está desacreditado? Que interessa se o parlamento de há muito olvidou os princípios de representatividade que lhe deram origem? Que interessa se o parlamento é figura de retórica, onde se pavoneiam políticos em fim de carreira e tentam espreitar outros na terrífica luta do tirocínio partidário? A grandeza do parlamento desfaz-se nos sinais exteriores, nas bandeiras e nos lautos manjares que pretendem dignificar as carnes de um cadáver.

O episódio do fausto envaidecido da bandeira do parlamento é um sinal exterior de riqueza, mas uma riqueza de há muito ausentada. Olho para esta exibição de auto-encómio e apetece-me rir. E desfraldar bandeiras, para hastear a expressão idiomática que se põe a jeito do episódio: rir a bandeiras despregadas. Só resta rir de quem se tenta colocar em bicos dos pés no esforço para recuperar a dignidade que foi evanescente. Pode o penacho semear a ilusão da solenidade: o esmalte do formalismo ensina, o parlamento é um órgão de soberania. Apenas, porém, um vetusto lugar onde se passeiam tácticas partidárias e ambições pessoais, que já pouco cultiva o lugar de representação popular. Sonegar isto através de fogachos de vaidade é uma estéril manobra. Um esboço para alcançar o impossível: retomar a dignidade do parlamento, como se uma bandeira fosse o acto de prestidigitação suficiente; ou para refulgência do ego que detém carreira amorfa, discurso monocórdico, de alguém que atingiu o zénite e sabe, no seu íntimo, para além da matéria onírica, que mais alto não há-de subir.

A última gargalhada: com os socialistas em maioria no parlamento, este órgão de soberania passou a ter uma bandeira própria. Que, pelo seu formato, ressoa a monárquico. Talvez o presidente do parlamento tenha andado todos estes anos a reprimir a sua simpatia monárquica. Sem surpresa: pois se o candidato presidencial das esquerdas que conquistou mais votos também o fez há pouco tempo, eis o mote para a “monarquização” dos socialistas caseiros. Ironias do destino, ou manias das grandezas…

15.1.07

Os democratas da intolerância


Já não é a primeira, nem a segunda vez, que aqui ficam palavras de perplexidade pela intolerância que certos “democratas” mostram perante as ressonâncias da extrema-direita. Tenho que regressar outra vez ao tema. Sinto vergonha destes estandartes da democracia que expelem a sua intolerância em relação à extrema-direita, assobiando para o alto quando se trata de passar os comunismos pelo crivo das consciências. Até parece que houve (e há) ditaduras más e ditaduras que, se não são virtuosas, merecem a indulgência destes “democratas” enviesados.

O último escândalo aconteceu no Reino Unido. Uma afamada bailarina, Simone Clark, cometeu o pecado de revelar a sua simpatia pelo partido de extrema-direita (United Kingdom Independence Party – UKIP). Saltaram da toca os guardiães da democracia, protestando contra a liberdade de pensamento que assiste à bailarina, como assiste a qualquer pessoa que viva em democracia. Porventura esquecem-se que a democracia se gaba disso mesmo, de se distinguir das ditaduras pela tolerância que permite aos seus detractores manifestarem as respectivas opiniões. Por mais sórdidas que sejam, mesmo que exibam um pensamento atentatório da democracia.

Estacionados à frente do Coliseu de Londres, onde a bailarina exerce a sua função, protestam contra a fascista bailarina: “o ballet deve estar livre de nazis”, apregoavam. Eis como, de repente, uma reputada bailarina caiu na desgraça. No exacto momento em que revelou a sua filiação ideológica, deixou de ser boa profissional. Há duas coisas que estes pastores da democracia não percebem: primeiro, a exibição da antítese da democracia, com a lamentável manifestação de intolerância que renega um dos valores mais acarinhados (pelo menos em teoria) pelo regime democrático; segundo, a tendenciosa parcialidade que lança o opróbrio sobre uma artista, que perde qualidades (aos olhos que quem protesta) devido às suas convicções.

É curioso que outro dos pregões repetidos à porta do teatro tenha sido “não ao fascismo e ao racismo no ballet”. Quem entoou estas palavras não terá percebido que estava a mostrar o contrário do apregoado. Os próprios manifestantes mostravam o seu racismo, variante ideológica. Desavergonhadamente, estavam ali a enlamear o nome da artista, como se as convicções ideológicas afectassem as qualidades artísticas. E como se o facto de Simone Clark ter revelado simpatia pelo UKIP fosse perigoso para a liberdade artística como valor. Ficou por explicar como pode a pertença ao partido da extrema-direita contagiar a companhia de ballet onde Simone Clark dança; ou o ballet como um todo.

O fascismo é deplorável? Com certeza. Daí a impedir os seus simpatizantes de expressarem as suas convicções, vai um passo rumo ao abismo. Àquele abismo onde os tais “democratas” se sepultam, para jamais conseguirem limpar a má imagem que deixam. O que me perturba é o seu olhar desequilibrado para as ditaduras. As que exalam o odor pestilento da extrema-direita – erradamente arrumadas no saco do fascismo, como se todas elas fossem fascismo – são censuradas. As ditaduras inspiradas no marxismo-leninismo (e suas variantes) merecem uma estranha complacência dos que saem à rua e gritam palavras de ordem contra o fascismo. Para mim, ambas as formas de ditadura são merecedoras do mesmo descrédito. O que não me leva a enveredar pela tentadora intolerância contra quem professa ideologias totalitárias. A liberdade de expressão é o valor maior. Não deve ser negado a ninguém. Nem àqueles que advogam ideologias que renegam esse valor.

Sem lugar para arrematar a imbecilidade, os manifestantes de Londres desenterraram o passado ominoso do fascismo, a sua relação conturbada com a criação artística. De acordo com a notícia do Público, “quando os fascistas ascendem ao poder destroem a liberdade de expressão artística”, invocando René Blum, o coreógrafo que fundou o Ballet de l’Opera de Monte Carlo e morreu em Auschwitz em 1943. Fica-lhes bem a parcialidade de resgatar do passado o que apenas convém. Não escapam à mácula da parcialidade, contudo. Porque também podiam olhar para o outro lado e invocar, por exemplo, Alexandre Soljenitsyne, só para dar um exemplo entre muitos criadores que foram perseguidos pela sua dissidência em relação ao comunismo.

A atestar pelos parâmetros destes auto-proclamados defensores da democracia, não haveria jamais espaço a artistas que fossem partidários do fascismo. Nunca teríamos conhecido Ezra Pound. E, à escala doméstica, talvez isso explique que António Manuel Couto Viana seja um poeta menor, pela marginalização a que é votado. É o que dá, quando se mistura o que deve permanecer em níveis diferentes: arte e política. Com a vergonha adicional: estes convencidos pastores da democracia empestam-se com uma anti-democrata intolerância. Na deriva intolerante, revelam o que são: falsos democratas.

12.1.07

Lisboa-Dakar, neo-colonialismo?


Declaração de interesses: o automobilismo é o meu desporto favorito. Contudo, não sinto a menor atracção pela aventura do Lisboa-Dakar. Há quem disserte longamente elogiando o espírito do rali-maratona que percorre um longo trajecto por desertos e savanas africanas. O formato não me agrada: pelos veículos envolvidos (nunca gostei de todo-o-terreno), por ser uma prova em que não contam os atributos de condução, mas a capacidade para poupar a mecânica e passar incólume pelas muitas armadilhas espalhadas pelo percurso.

O “Dakar” vai fazer trinta anos na próxima edição. Apesar de não lhe dedicar muita atenção, não me lembro de ser tão atacado pelas consciências do politicamente correcto como este ano. Alguns ataques partiram de cronistas domésticos que ofereceram uma argumentação delirante: o Lisboa-Dakar resume-se a uma deplorável exibição de neo-colonialismo, versão século XXI. Helena Matos no Público do passado sábado e um Cadilhe que escreve crónicas relatando a aventureira viagem que atravessa a África profunda, nas páginas do Expresso, são dois exemplos. Como é a segunda vez que o “Dakar” parte de Lisboa, é natural que certas almas que porventura desconheciam o rali aproveitassem a ocasião para destilar o seu fel, repito, politicamente correcto.

Surpreendente – ou talvez não – é a reacção da igreja católica. Que me recorde, nas anteriores vinte e oito edições do “Dakar” a igreja ignorou a aventura de motas, carros e camiões África dentro. Apesar de todos os anos haver mortos a lamentar entre concorrentes e público. Este ano o Lisboa-Dakar entrou para a agenda mediática da igreja. No L’Osservatore Romano, o editorialista saiu da sacristia, denunciando a competição nestes termos: "numa atitude cínica, que ignora por completo a realidade que atravessam, lançam-se no deserto automóveis, motos e mesmo enormes camiões, a velocidades loucas, cujos destroços ficam abandonados, muitas vezes, como monumentos à irresponsabilidade". Para engrossar uma estranha coligação – composta pelos habituais ambientalistas, detractores da globalização, certos espécimes da direita bolorenta lusitana e pela hierarquia eclesiástica no Vaticano –, o tiro no alvo. A igreja sentencia o Lisboa-Dakar, lançando-o na desgraça por "exportar modelos ocidentais para ambientes humanos e ecossistemas que, de ocidental, têm muito pouco".

Acho inquietante a ginástica mental que decifra sinais escondidos em ambientes que são tão simples, sem segredos. Sigo intrigado com a sanha persecutória contra as corridas de automóveis, com o detalhe da acusação neo-colonialista que pesa sobre o Lisboa-Dakar. A igreja não usou a expressão neo-colonialismo. Mas que outra conclusão se pode retirar ao ler a derradeira citação – "exportar modelos ocidentais para ambientes humanos e ecossistemas que, de ocidental, têm muito pouco"?

Temos que agradecer a estas luminárias que nos despertam do torpor. Não fosse o seu desassombro, a vocação para destapar o cobertor que esconde as verdadeiras intenções de uma prova tão insidiosa como o Lisboa-Dakar, e ficaríamos mergulhados na ignomínia, enternecidos com a aventura quase sobre-humana dos concorrentes do Lisboa-Dakar. Afinal, é tudo ao contrário. Os concorrentes são agentes infiltrados do neo-colonialismo. Estarão a soldo dos franceses, pois a competição é uma organização francesa; ora a França ainda digere mal a perda de influência mundial que sofreu depois da segunda guerra mundial e após a desagregação do seu império colonial.

E sigo intrigado, também, pela capacidade dos críticos descobrirem chifres na cabeça do cavalo. Ver no Lisboa-Dakar uma manifestação de neo-colonialismo revela uma miopia doentia. Tivessem a preocupação do rigor, houvesse um esforço de documentação dos factos, e teriam espaço para acomodar nas suas cabeças uma conclusão diferente. Primeiro, veriam que o Lisboa-Dakar é apenas uma competição desportiva. Segundo, poderiam entender que a competição não ofende os habitantes dos remotos locais africanos por onde passa. Os detractores ultrapassam a vontade dos governos dos países atravessados pela caravana do Lisboa-Dakar. Acaso houvesse o menor laivo de neo-colonialismo, os governos de Marrocos, Mauritânia, Mali e Senegal dariam permissão para o rali atravessar os respectivos territórios?

Da igreja, nos dias que correm, espero tudo. Alguém terá acordado mal disposto na sua cela monástica e decidiu investir a ira contra o Lisboa-Dakar. Porventura terão sido as primeiras imagens que essa caridosa alma viu ao pequeno-almoço. E se, em vez da cáustica análise, o Vaticano pensasse em inscrever um carro na próxima edição do Lisboa-Dakar, com o veículo preenchido por dísticos bíblicos e uma tripulação de sacerdotes que aproveitariam os tempos mortos entre cada etapa para evangelizar os demais concorrentes?

Só faltava explicar que no Lisboa-Dakar seguem os novos cruzados, intérpretes de uma cruzada malévola. A tentação terá sido refreada quando o editorialista do órgão oficial do Vaticano se lembrou das cruzadas África dentro, das missões de evangelização que espalharam a civilização cristã. Só resta esta pergunta: lá no Vaticano, não têm mais que fazer?

11.1.07

Aquelas árvores que tombavam


O dia chuvoso marcara encontro com o dia terminal daquelas quatro árvores. Despidas de folhas, que a invernia já tinha soprado todos os vestígios da folhagem num turbilhão que se espalhara pelo solo castanho. Dir-se-ia: a invernia desnudara as árvores como presságio do dia tão próximo do seu descenso.

Um demorado processo de poda precedia o golpe fatal. Os homens subiram às árvores. Empunhando barulhentas serras mecânicas, começaram a seccionar os galhos, uns finos e outros grossos, que subiam em direcção ao céu. As altivas árvores eram decepadas das suas extremidades. Sem um grito, nem um pingo de seiva fugidio, como se fosse lágrima furtiva exibindo a dor terminal das árvores sentenciadas. Estóicas, silenciosas, inertes – suportavam o trabalho árduo dos operários que as preparavam para o momento final em que perderiam o contacto com o nutriente solo onde estavam enraizadas.

Um a um, os galhos perdiam-se no vazio. Já fora do ângulo de visão, uns segundos mais tarde ecoava o ruído seco: o ramo a estatelar-se no solo. No cemitério dos despojos das quatro árvores, pacientemente esbulhadas de toda a sua vida. Era aquela a poda definitiva. Não tinha intenção de embelezar a árvore, de a expurgar de galhos excessivos que se contorcessem em direcções desalinhadas. A poda definitiva. Só os esparsos pássaros que por ali voavam e as ramagens do terreno vizinho eram testemunhas da sentença que se executava, demorada e paciente. Nem as estrelas, a coberto da noite que tinha dado lugar à manhã sombria, tinham sido chamadas para presenciar a despedida sem lamentos das quatro árvores.

As dores do progresso. A construção necessária: os edifícios que vêm albergar o bem-estar das pessoas. Por vezes, impõe-se o sacrifício das árvores. Vítimas inocentes da soberba humana – diriam os ávidos ambientalistas, eles sim doridos com o cenário que desfilava diante dos seus olhos. A lição de todos os dias: alguém suporta sacrifícios quando é projectado o bem-estar que há-de ser aspergido por alguns. De umas vezes, há pessoas convocadas para o ritual dos custos necessários, o ofício da redistribuição que merece inumeráveis loas dos demagogos. De outras vezes, seres vivos, mas inertes, são despojados da sua existência. Nuns casos como noutros, o altar sacrificial compõe-se sem lugar às palavras das vítimas.

Uma a seguir à outra, depois dos vários galhos que as engalanavam, as árvores tombavam com um fragor assustador. Só quando estivessem nuas, oferecendo apenas um insalubre tronco com os nódulos da madeira à mostra, podiam os operários desferir o golpe fatal. Pegavam numa serra mais poderosa, de onde silvos metálicos mais estridentes soerguiam no rumorejo da manhã. Uns breves minutos que pareciam tão longos, como todas as décadas acumuladas no tronco daquelas árvores. A serradura amontoava-se em redor da embocadura do tronco, uma serradura quente e humedecida pelas gotas da chuva que entretanto visitava o local. A marcha arrastada da serra mecânica era cadenciada, tragando a dureza da cilíndrica madeira onde assentavam as árvores.

O último veio, já sem forças para resistir à persistência da serra mecânica; o tronco tombava, majestoso, o garbo derradeiro das árvores que ornamentaram aquela paisagem particular. Não houve o festejo tradicional dos madeireiros, como se vê nos filmes. Ninguém gritou um efusivo “timber”. Os rostos fechados dos homens atarefados com a remoção das árvores denunciavam o seu incómodo. Afinal as árvores eram obstáculos ao que os esperava. Sem o perceberem, aqueles homens eram os primeiros espectadores do velório das árvores. O seu silêncio, uma doentia indiferença quando as quatro árvores, uma após outra, perdiam a ligação com as raízes que mergulhavam bem fundo na terra escura. Essa era a tarefa restante, o golpe mesmo final nas páginas dedicadas às quatro árvores. Foi a vez de um potente tractor solfejar a sua bravura, arrancando o emaranhado de veios que se entrelaçavam fora da vista dos humanos. O glóbulo enraizado, um misto de ramos e terra enlameada, desprendia-se da base. O ponto final.

Doravante, as estações vão estranhar a ausência das quatro primas árvores que estavam de vigia para as receber, as abraçar nos dias de cada uma delas, altivas na despedida quando se impunha abrir o calendário à estação seguinte. A perene condição do planeta: quando há vida que prospera na consumição mortífera do alheio.

10.1.07

Convence-te: não podes mudar o mundo


És já velho demais para resgatar adolescentes idealismos. Olhas em redor e repugna-te a insidiosa maneira de fazer as coisas, as perfunctórias decisões que ecoam apenas o confortável facilitismo. Há dias em que o cansaço fala mais alto. Outros em que percebes que a adolescência é apenas uma recordação já distante; e que, empacotada a adolescência no baú das memórias, a persistente acrimónia só merece um cínico esgar. Para teu sossego interior.

Mas há outros dias em que a carapaça se esboroa quando o infausto se acomete sobre ti. Manipulações diversas apanham-te no meio de guerras alheias, quando és subtilmente arregimentado para uma facção e a seguir para o outro lado; ou quando és convidado a caucionar a banalização que destrói o rigor; ou quando dás conta que te rodeiam pessoas mestres na arte da dissimulação, ora dizendo isto e logo a seguir o seu contrário, conforme as conveniências. Assustadora a falta de coluna vertebral de muitos. Chegas a um diagnóstico preliminar: ou estás dominado por uma dolorosa ingenuidade, ou deixas-te invadir por um acesso de idealismo que vem das profundezas de antanho, quando a idade imberbe apascentava idealismos.

Já aprendeste que sozinho és incapaz de mudar o mundo. Até já terás alcançado que nem te apetece mudar o mundo, sem contudo cederes perante a escada que o mundo real te estende. Estás assim, desorientado perante a encruzilhada que te aparece. Não sabes se ceder à tentação do mais fácil, ou se permanecer fiel aos princípios cada vez mais ingénuos, desfasados do mundo onde vives. É um dilema que te dilacera, mais quando irrompem os momentos de turbulência interior. Podes optar pelo caminho mais fácil. Sendo inviável remar sozinho contra a gigantesca maré, deves ser confortavelmente levado por ela. Perder as ilusões que sempre dominaram os teus sentidos. Provavelmente padeces de miopia quando diagnosticas o que te cerca. E, provavelmente, tens andado errado em todos estes anos. Os idealismos que te desligam da terra são uma inconsequente estrada. Todos os passos que ali deste, sinais da desorientação que te atormenta. Se estás seguro que sozinho és um minúsculo grão incapaz de mudar o mundo, terás discernimento para perceber que és tu que estás errado, não o mundo?

Todavia, resta sempre o lugar à dúvida. Permanece a angústia do outro caminho que a encruzilhada te oferece. Ressuscitar ideais antigos que foram remetidos à letargia com a idade amadurecida. Em letargia, sublinho: não foram encerrados numa gaveta e arquivados, sem retorno, na bolorenta arrecadação do que já não se resgata. Por vezes, há esta pulsão de retornar aos idealismos que estiveram em carne viva quando o pragmatismo era uma palavra vã. Não sabes se é uma súbita vontade de rejuvenescer, a ânsia de falsificar o tempo e recuar à juventude intensa que teve o seu tempo. Coincide com o cansaço do tempo, a repugnância do modo que vinga por todo o lado. É então que te sentes deslocado, ilhéu perdido que enfrenta as alterosas vagas que rebentam em cheio sobre ti.

Assim desnorteado, sem saber por que caminho da encruzilhada enveredar. Por mercê do sossego interior, a forte tentação de seguir pelo caminho alisado, por essa longa recta insípida onde tudo se aplaina no comodismo de ser mais um a tocar a sinfonia do pragmatismo. O caminho desprovido de paisagem, asséptico. Sem lugar a questionar valores e comportamentos: a sua vulgarização será sinónimo que as vozes dissidentes se desligaram da razão. O pragmatismo é a espada que cai, impiedosa, sobre idealismos diversos que se recusam a aceitar o mundo tal como ele é. O teu lado natural, espontâneo, grita condoído com a entrega nos braços do pragmatismo. Uma cedência, a demissão de ti mesmo, a acomodação ao pragmatismo - tudo na denúncia de vogar no facilitismo da grossa maré que nos empurra no mesmo sentido. Um bastão indolor, que a cedência ao pragmatismo inocula oportuna anestesia. Como se fosse uma venda que cerra os olhos, convenientemente fechados para não testemunharem o que seria incómodo se os ideais sonegados ainda imperassem.

Estás como uma nau que perdeu o mastro a seguir à tenebrosa tempestade enfrentada. Erras sem destino, ao sabor dos ventos que sopram de todas as direcções. E temes que as forças se exauram antes de alcançares porto de abrigo.

9.1.07

Congelar o tempo


Em França, uns castiços vieram para a rua em manifestação contra 2007. Confirma-se o estado da humanidade nos alvores do século XXI: somos muito exigentes. Tanto que até o impossível entra para o alfobre dos protestos organizados. É sinal de vitalidade. Será errado esboçar um sorriso de desdém, acenando com a cabeça, em tom de reprovação pelo que parece uma idiotice? É errado: há-de vingar o exercício criativo, que é disso que a humanidade carece para se escapar às águas furtadas do breu persistente que cinzela as nossas vidas, cada vez mais parecidas com simples vidinhas.

Os castiços franceses organizaram-se, pintaram tarjas e ecoaram palavras de ordem na rua. Contra 2007. Nada em especial contra 2007. Apenas não queriam que o ano antigo desse lugar a um ano novo, pela sugestão de envelhecimento que o novo ano transporta consigo. Queriam ser artífices da imortalidade do tempo. Queriam parar os ponteiros dos relógios, de todos os relógios do mundo, e certificar-se que enclausuravam o tempo.

Serão tementes da marcha imparável do tempo, dos segundos amputados até ao momento final destinado a cada um. Terão medo da morte. Ou serão, apenas, uns serôdios a quem a algazarra é o fito maior, tudo servindo para o lagar da chacota. Os que vêm o entardecer da vida descer tão vertiginoso são suspeitos: ambicionam que o tempo seja emoldurado numa fotografia. Tudo o demais continuaria a passar pelo crivo dos ponteiros. Os privilegiados seriam testemunhas do alto de uma poltrona, com o relógio parado, vendo a marcha do tempo só para os outros. Quando muito, gostariam que o tempo abrandasse. Prolongando os anos derradeiros até à consumição final, como se nesses anos vivessem mais para além do espartilho temporal.

O alarido desmerece vistoria detalhada? Suspeito que nos é dado a conhecer uma trupe que se delicia a gozar com tudo e com todos, até com o tenaz abutre aprazado para furtar as vidas dos encenadores da paródia. Ou talvez não. Ecoando tão alto os protestos contra a entrada em 2007, não é a beleza da vida o móbil da vozearia. Por um momento, imagino que há seriedade e convicção na causa. Poderá a imortalização do tempo ter o dom de impedir a evolução das coisas, o envelhecimento dos tecidos, a pele enrugada, a vista humedecida com a fria brisa matinal? Decerto gente contristada com a evolução dos tempos, com a sua marca indelével – o progresso, o trote incansável das tecnologias que remetem para o abismo quando nos achamos demodés. Gente que gostaria de parar o tempo para estancar o progresso que cresce em escala geométrica e asfixia na sua celeridade. Não será a morte que receiam; estarão cansados da evolução que anda mais depressa que o próprio tempo.

E se pudessem os governantes, por decreto, fazer a vontade aos manifestantes? Se um conciliábulo reunisse as mais altas figuras dos países e todos concertassem a redefinição do tempo? O calendário seria eliminado. Os relógios destruídos – e ai de quem ousasse desprezar o comando universal que determinava a entrega compulsiva dos relógios. Adivinha-se o caos? O que fazer aos horários dos aviões, dos comboios, de todos os meios de transporte? E os aniversários, onde seriam festejados quando as pessoas perdessem a noção do tempo? A pulsão anti-tempo daria azo a uma bem treinada polícia de costumes, vigilante em todas as esquinas, espreitando em todas as casas à espera de apanhar pessoas em contra-mão, na celebração de uma qualquer efeméride.

Os aviões descolariam quando lhes aprouvesse, os comboios teriam ordem para circular sem obediência a horários. Nada teria o tempo como medida. Até o vocabulário seria redimensionado: “nunca”, “até logo”, “daqui a uma hora”, todas as palavras que sugerem uma noção de tempo seriam banidas do dicionário, proibidas na utilização corrente. Tudo se passaria como tivesse eclodido uma gigantesca bomba de neutrões que aniquilasse a existência do planeta. Doravante, apenas contariam os sonhos, onde nada passava pelo crivo do efémero.

No imaginário dos demolidores do tempo, só lugar para degustar os momentos adocicados que vêm visitar as vidas. Houvesse lugar ao sabor amargo, indigesto, que o não efémero teria o condão de o perpetuar numa agressão constante e extenuante das pupilas gustativas da vida. Podem as divindades que fertilizam a criatividade tirar as barbas de molho. Olhamos ao espelho e vemos que os anos que dobram não escondem as marcas da vida acumuladas na pele, nos olhos, no cabelo, nas sofridas veias que se fatigam de curtir as asneiras, num coração mais cansado. Sinais do tempo que corre, imparável, rumo à sua foz.

O tempo. Tão fácil de emoldurar como o vento é aprisionado pelos dedos.

8.1.07

O poder é do povo e está na rua


Estou convencido: o povo é a alma da democracia. Quando vejo a populaça a sair à rua e a gritar, de pulmões abertos, contra o que a oprime, percebo que é pela voz do povo que se deve pautar a governação. Está ali o pulsar espontâneo das massas. Para confirmar o adágio: “é sábia a voz do povo” (descontando o julgamento em causa própria, pois quem sentencia a sapiência da voz do povo é o próprio povo…).

O povo vem para a rua: nos santos populares; olhar para o céu, embevecido, quando estalam os foguetes que sinalizam a entrada no novo ano; festejar as vitórias desportivas do clube da cidade, num ensejo para hostilizar os rivais; nas procissões, única manifestação silenciosa em que a turba se irmana numa devoção que se confunde com paganismo supersticioso; de chinelo na mão, com vontade para chacinar criminosos que vão ser julgados pelos crimes mais hediondos; protestar a sua discordância, ora sussurrando o incómodo, ora levantando uma vaga de fundo de um coro de protestos bem audível. A educação democrática ensina que não se deve calar a voz popular.

Não fosse o trauma da ditadura que silenciou longamente as vozes dissidentes, apetecia desmentir o dogma democrático. Estamos ainda na adolescência democrática. Presos aos tiques totalitários que as gerações passadas nos legaram, ainda comprometidas com uma prática que se enraizou até aos poros. Assim estamos, desorientados entre dois fogos: entre as pulsões totalitárias e a vontade de exprimir as liberdades. Quando nos entregamos à voragem libertária, confundimos preceitos: muito depressa se ajuíza a necessidade de colocar o microfone à frente de anónimos representantes do povaréu. Vinga a ideia que o povo é a essência da democracia; por tudo e mais alguma coisa, o povo é convocado para dizer de sua justiça. Nem que seja para falar do que não sabe, na triste manifestação da pura ignorância. Perverso entendimento de democracia, quando vem embrulhado no adjectivo “popular”. A democracia assim entendida dá a voz à ignorância.

O povo da minha cidade anda frenético por estes dias. Protesta contra a reorganização dos autocarros. Denuncia os senhores que no conforto dos gabinetes traçaram as novas linhas que vieram prejudicar o povo mais os seus hábitos de transporte. O povaréu desafia os administradores da empresa a deixarem as regalias do transporte privado, para sentirem as agruras trazidas pelas modificações. Multiplicam-se as "comissões locais" que protestam contra as alterações nas linhas. Não terá sobrado nenhuma modificação a gosto das populações das várias zonas cobertas pela rede de autocarros. Como já há largos anos não embarco num autocarro, das duas uma: ou o povo tem razão e a administração da empresa é inepta; ou os administradores não são tão incompetentes e tudo não passa das dores de ajustamento a novos hábitos.

Não ponho as mãos no fogo pela competência da administração da empresa de autocarros. Todavia, custa-me a crer que as modificações tenham sido feitas de forma leviana, sem uma avaliação no terreno. Das várias manifestações de protesto que ouvi nos últimos dias, há uma que revela a desorientação que se apoderou do povaréu. Uma senhora dizia, indignada, que o 53 (que desapareceu do mapa) andava sempre apinhado de gente e que a carreira que o veio substituir anda às moscas. Esta alma iluminada prefere que os autocarros andem cheios de gente; decerto mais confortável que um autocarro em que todos os passageiros têm lugar sentado e não são obrigados a viajar emparedados entre dois vizinhos que deixam escapar o odor desagradável de quem não vê um duche há vários dias. Eis a conclusão: o povo é pouco dado a hábitos de higiene. Num autocarro com poucos passageiros, o arejamento dilui os maus odores. O que o povo gosta é do cheiro fétido que emporcalha o ar.

Viva a democracia popular! O pulsar do povo é a manifestação genuína que deve ser a bússola de quem manda. Se o povo está organizado nas ruas e quer o regresso ao passado, só resta fazer a vontade ao povo. O retrato neo-realista diz tudo: velhinhas afogueadas no protesto, mostrando a desdentadatura e cuspindo perdigotos que veiculam o descontentamento; regateiras esbracejando para todos os lados, com impropérios à polícia que tentava assegurar a ordem; senhores mais calmos, porta-vozes da “comissão local de utentes”, desfiando o caderno de reivindicações, atapetados com trambolhões na gramática tão típicos de quem puxa os galões e tenta falar caro.

Desconfio que estes anónimos que emergem como porta-vozes serão militantes de quinta categoria que saltam das profundezas da nomenclatura partidária. É o aproveitamento oportunista de certos partidos que moldam os movimentos populares que nos surgem, diante dos olhos, como movimentos espontâneos. Tão espontâneos como a inocência de quem acreditar na sua espontaneidade.

5.1.07

A “esquerdização” da direita francesa


Entre os estudiosos da política, uma dos temas que mais aquece o debate é a distinção esquerda/direita. Para alguns deixou de fazer sentido olhar para a política dentro do tradicional hermetismo entre direita e esquerda: ambos os lados incorporaram ideias e práticas que eram apanágio do outro lado da barricada. Assim como a direita passou a contemplar algumas causas sociais, também a esquerda (mais moderada) tomou-se de amores pelo pragmatismo e moldou as políticas ao império da globalização e do capitalismo. Para outros, apesar de tudo ainda faz sentido a divisão entre direita e esquerda. Nem que seja pelo conforto das convenções sedimentadas com o tempo.

De ontem vem uma notícia que parece dar razão a quem aponta para a osmose entre direita e esquerda. O primeiro-ministro francês anunciou que todos os residentes poderão reclamar o direito a habitação condigna perante os tribunais, que doravante irão forçar o Estado a cumprir com as obrigações previstas na Constituição. De acordo com a notícia, o plano envolve duas fases: “a primeira começará no final de 2008, e beneficiará os sem-abrigo, trabalhadores mais pobres e mães solteiras. A segunda, que poderá terminar em Janeiro de 2012, permitirá que todas as famílias ou pessoas a residir em espaços exíguos ou insalubres possam exigir uma casa digna”.

Anoto que isto está em fase embrionária. O primeiro-ministro francês apenas prometeu a apresentação de um projecto de lei para discussão no parlamento. As eleições presidenciais estão num horizonte de quatro meses. A direita francesa sente que a candidata socialista beneficia de uma ampla vaga de fundo, atrelada ao populismo do seu pacote eleitoral. Porventura a medida anunciada faz parte da batalha eleitoral, com os rivais a puxarem da imaginação que permita um sedutor pacote de promessas para atrair a maior fatia do eleitorado. No rescaldo do eleitoralismo, já se sabe, sobra pouco. É um vício da democracia: o largo hiato entre promessas e concretizações. Os políticos servem-se da memória curta do eleitorado para passarem uma esponja nas promessas miríficas. Quando assentam os pés no chão, fica a política do possível, bem longe das promessas esplendorosas que ficaram registadas durante a campanha. Os votantes, engodo fácil, farão as vezes de vítima de adultério. Um logro.

Duvido que seja possível concretizar a medida. Primeiro, ela não passa de um anúncio que embeleza a campanha eleitoral. O mais certo é cair em saco roto. Segundo, ainda que promessa se solte das amarras das belas intenções, duvido que haja condições para o Estado francês garantir a todos os necessitados uma habitação condigna. O erário público não estica. Logo agora que a França – e todos os países que estão na zona euro – tem que se orientar por uma judiciosa disciplina orçamental, fico sem perceber onde vão descobrir os recursos para financiar esta medida. (A menos que a França fique sem vergonha de lamber as feridas da potência mundial que deixou de ser, desafectando recursos da defesa para a habitação social). A intenção é bela; o tempo sublinha a ausência de condições para a tornar viável.

Para além destas dúvidas, o que fica do anúncio do governo francês é o simbolismo da promessa. A garantia de habitação condigna a todos os carenciados inscreve-se nas preocupações sociais que são terreno pisado pelas esquerdas. Nem que seja pelo atractivo da captação do voto fácil, embrulhadas num vistoso papel de celofane da demagogia e do populismo. Entretenho-me, pelo caminho, a imaginar a atrapalhação e o alvoroço dos apoiantes da candidata socialista. Adivinho-os, desorientados, como quem sente que o chão desapareceu debaixo dos pés. A promessa tem o timbre tão próprio da esquerda, desfraldando a bandeira da sensibilidade social que a esquerda convoca para si com exclusividade. Existe o risco de parte do eleitorado de esquerda se deixar seduzir pela promessa do governo francês e votar no candidato presidencial da direita. Um curioso cenário que se perfila: a candidata da esquerda derrotada por causa de uma promessa da direita com o cunho esquerdista.

Também me entretenho a adivinhar a irritação dos esquerdistas empedernidos, mais as cambalhotas mentais dadas para combater a promessa da direita francesa. Se forem fiéis aos seus princípios, terão que aplaudir a promessa. Ela encerra tudo aquilo que as esquerdas defendem: os interesses dos mais desfavorecidos. Há sempre espaço para a contestação da promessa, denunciando-a como tal, um simples artefacto do jogo eleitoral. É uma armadilha pisada por quem usar esse argumento: todas as promessas eleitorais que eles fizerem vêm manchadas com a mesma mácula.

Não fiquei surpreendido com a promessa da direita francesa, apesar de ressoar a algo que vem contra a maré. Esta é uma direita que sempre viveu dependente do intervencionismo do Estado, uma direita que está nos antípodas do liberalismo. Caduca como a França. Em 2012 cá estaremos para julgar as intenções da direita francesa.

4.1.07

“O medo é o pai da moralidade” (Nietzsche)


Desenvolvo, com a passagem do tempo, um profundo sentimento de desrespeito pela autoridade. Pelas autoridades de todo o género. Não consigo combater um odiozinho de estimação pelos polícias. Acho que não estão à altura das responsabilidades. Ou por não serem formados de maneira competente, ou por ter a impressão que na polícia entra muito refugo da sociedade, não consigo confiar nos homens que garbosamente ostentam os galões de “agentes da autoridade”.

Nos polícias mais velhos, o estigma da autoridade sente-se com denodo. Há ali um salazarismo que não hesita em espreitar a luz dia em plena democracia. Herdeiros de uma forma amesquinhada de pensar, consideram que a farda os coloca num altar de onde os civis olham de baixo para cima, com muito respeitinho. Aliam a boçalidade da quarta classe mal tirada com o erro de perspectiva sobre o que é o exercício de autoridade. O mal é que as chagas de quarenta e oito anos de ditadura perduram ainda hoje, já a ditadura dobrou de finados há mais de três décadas. Há, um pouco por toda a sociedade, o convencimento que devemos escrupuloso respeito às autoridades, polícia incluída. Senão a ordem, a tão sagrada ordem, pode estar em sobressalto.

Os elos da engrenagem engatam-se numa espiral implacável. Sem perceber onde começa a relação causal: se na autoridade que se impõe de cima para baixo, com a complacência de um rebanho ordeiro e próximo da acefalia; ou nos hábitos enraizados que fazem de nós, enquanto colectivo, um grupo amansado e temente perante as autoridades, reforçando o poder que exercem sobre nós. Porventura ambas as coisas interagem. Os polícias sabem que somos instruídos para lhes prestar respeitosa vassalagem. A relação é desigual: polícias pesporrentes, com tiques de autoritarismo – pois a massa encefálica não consegue separar autoridade de autoritarismo; e as massas, temerosas ante a autoridade, rebaixando-se a quem detém o poder, o que exacerba ainda mais o poder que têm.

Perante este estado de coisas, cresce a vontade de confrontar os polícias quando entram em rota de colisão comigo. Como lhes ganhei espécie, perdi o respeito que a ordem social tranquila nos inculca desde os bancos da escola. Um polícia tem o condão de esgotar a paciência logo à primeira manifestação de arrogância. Perdi a capacidade de tolerar os dislates de quem usa farda e se serve dela para se pôr em cima dos tamancos, à espera de um sinal de humilhação do cidadão como prova do enorme poder que está nas mãos do agente da autoridade. Confronto-os, questiono a pesporrência, advirto-os que como agentes da autoridade perdem a razão quando confundem autoridade com autoritarismo.

O cúmulo da arrogância acontece quando agentes da autoridade tentam passar lições de moral. Já me aconteceu. Respondi, com dedo espetado e voz ríspida, que não admitia lições de moral do polícia que usava voz firme. Ele que fizesse o que tinha a fazer – passar uma multa por ter estacionado em local proibido – sem mais, dispensando as lições de moral. Não é para isso que os polícias existem. Tudo se descompôs quando o agente da autoridade puxou lustro à ignorância e, metendo os pés pelas mãos, confundiu moral com direito. Queria-me explicar o direito, ainda que o fizesse à guisa de lição de moral. É nestas alturas que a licenciatura em direito tem alguma utilidade. Para dispensar a explicação jurídica do polícia (que também não é sua função) e fazê-lo descer à terra. Um dia destes ainda acabo numa esquadra a responder pela acusação de desrespeito à autoridade...

Um sinal de amadurecimento social passa pelo dever de sermos cidadãos plenos. Enquanto houver muita gente temente da autoridade, por acreditar que de contrário a sacrossanta ordem é equacionada, seremos cidadãos em grau diminuído. A autoridade há-de continuar a ser exercida em tons de autoritarismo enquanto tivermos a passividade de olhar para os polícias como poderosas entidades que não devem ser questionadas. O rebaixamento de cada pessoa desmerece a sua condição de cidadão. E fortalece, a cada sinal de temeroso respeito, a deriva de autoritarismo que nos cerca.

Poderá, nesta análise, o quadro mental do libertário arrojar preconceitos contra a autoridade que se impõe sobre o indivíduo. Concedo. Também aqui não consigo perceber onde está a raiz do problema: se na bafienta polícia que parou no tempo, convencida que ainda vive no tempo em que devíamos respeitinho às salazarentas autoridades; ou se terá sido a percepção deste estado de coisas que (também) acicatou o libertário que cresceu em mim.