Fico sem jeito quando cumprimento uma senhora e tenho que ficar a meio da função. Parece que a moda alterou um hábito social – cumprimentar as senhoras com dois beijos, um em cada face. A moda dita a economia de esforços. Agora pespega-se um ósculo numa das faces – a que estiver mais a jeito – e encerra-se o assunto.
Fico apatetado com este novo uso social que se espalha. Ainda não habituado a ele, fico de lábios repuxados a meio do caminho para oscular a segunda face, quando a senhora entretanto já desviou a cara para outro lado, satisfeita com o singelo beijo. É como se o chão fugisse debaixo dos pés quando ao segundo passo vem o abismo. Ficam os lábios, por uns breves segundos que se transformam em eternidade pelo desconforto da situação, a beijar o vazio. Tão habituados a agraciar as faces das senhoras com dois beijos que desempatam ambas as faces, os lábios vão sendo educados a cultivar a discriminação das faces. Agora há uma que fica sequiosa do beijo que a outra recebeu. Arremete-se o aleatório: as duas faces invejam-se quando a outra merece o conforto do beijo, sendo depositária do afago que os lábios carnudos semeiam.
Não me acomodo ao novo uso social. Porventura a teimosia deve-se à conotação “social” que o modismo revela. Tias de Cascais terão inspirado a moda, que se contagia por todo o lado, com mais expressão nas aspirantes à ascensão na tão importante escala social. Resisto ao modismo. Prefiro ficar com o segundo beijo suspenso, na patética figura de quem fica parado no vazio com os lábios preparados para o ósculo que já não tem destinatária. Ou teimar, trazer os lábios expectantes do beijo par e perseguir a face esquiva em demanda do ósculo em falta. Poderei arrostar com o rótulo de “possidónio”, demodé, careta, parolo, o que quiserem. Hei-de ateimar pelo controverso gosto de irromper contra o modismo inconsequente. Só por isso; não por defender hábitos instalados, que se há coisa que não sou é conservador.
Estes usos vêm com a educação em casa, sedimentada nos subtis sinais revelados na convivência escolar. São parte da idiossincrasia nacional. Já os franceses estão acostumados a triplicar o beijo. E lembro fotografias que retratavam encontros entre ditadores do bloco comunista, cumprimentando-se com um ternurento e, para os nossos hábitos, homossexual beijo boca a boca. A formatação dos hábitos espalha o incómodo quando somos confrontados com a mudança que se instala. Há gestos que são mecânicos: inspirar e respirar, desviar o olhar quando a audição recebe um ruído estridente, esboçar um sorriso de desdém perante as ideias patéticas dos políticos que enxameiam a comunicação social. E depositar dois ósculos em cada uma das faces das senhoras.
Apetece-me o especulativo exercício de descobrir as razões da moda do beijo ímpar. Só me ocorre que a economia do beijo reproduz a tendência da poupança de esforços que vamos cultivando. Um sinal de modernidade. Os afectos são economizados, pois perdemo-nos em minudências estéreis. São as novas prioridades: o trabalho, a carreira profissional, fermentos do desapego dos sentimentos pessoais. Há, no economizar de ósculos, a desumanização de nós mesmos. Dir-se-ia que o pragmatismo vingou: para quê repetir a função, se o objectivo se preenche com um singelo beijo? Ademais, o princípio encontra reciprocidade nos intervenientes do beijo. Quem o recebe contenta-se com o beijo ímpar, para a sua delicada pele facial não ser cansada com um segundo beijo desnecessário. Quem os pespega poupa beijos para outras ocasiões. Um basta para que a obrigação social esteja preenchida.
Ora, isto será lição para políticos e economistas que pregam no deserto quando divulgam a pedagógica mensagem da poupança. Tentam-nos convencer que consumimos de mais e poupamos de menos. Podiam empregar o exemplo do beijo ímpar. E explicar que, tal como na reconfiguração do uso social que faz com que teimosos homens fiquem de beijo suspenso na função cerceada pela metade, haveria que estender o economizador espírito ao que fazemos com o dinheiro. Às vezes, o exemplo vem do lado mais inusitado. Quem sabe se à custa da moderação oscular um dia seremos um país com mais poupança; logo, com luminosas esperanças de mais prosperidade. Seria irónico: como a poupança de beijos teria funcionado como o tão ambicionado milagre económico que nos é prometido há tanto tempo.
Fico apatetado com este novo uso social que se espalha. Ainda não habituado a ele, fico de lábios repuxados a meio do caminho para oscular a segunda face, quando a senhora entretanto já desviou a cara para outro lado, satisfeita com o singelo beijo. É como se o chão fugisse debaixo dos pés quando ao segundo passo vem o abismo. Ficam os lábios, por uns breves segundos que se transformam em eternidade pelo desconforto da situação, a beijar o vazio. Tão habituados a agraciar as faces das senhoras com dois beijos que desempatam ambas as faces, os lábios vão sendo educados a cultivar a discriminação das faces. Agora há uma que fica sequiosa do beijo que a outra recebeu. Arremete-se o aleatório: as duas faces invejam-se quando a outra merece o conforto do beijo, sendo depositária do afago que os lábios carnudos semeiam.
Não me acomodo ao novo uso social. Porventura a teimosia deve-se à conotação “social” que o modismo revela. Tias de Cascais terão inspirado a moda, que se contagia por todo o lado, com mais expressão nas aspirantes à ascensão na tão importante escala social. Resisto ao modismo. Prefiro ficar com o segundo beijo suspenso, na patética figura de quem fica parado no vazio com os lábios preparados para o ósculo que já não tem destinatária. Ou teimar, trazer os lábios expectantes do beijo par e perseguir a face esquiva em demanda do ósculo em falta. Poderei arrostar com o rótulo de “possidónio”, demodé, careta, parolo, o que quiserem. Hei-de ateimar pelo controverso gosto de irromper contra o modismo inconsequente. Só por isso; não por defender hábitos instalados, que se há coisa que não sou é conservador.
Estes usos vêm com a educação em casa, sedimentada nos subtis sinais revelados na convivência escolar. São parte da idiossincrasia nacional. Já os franceses estão acostumados a triplicar o beijo. E lembro fotografias que retratavam encontros entre ditadores do bloco comunista, cumprimentando-se com um ternurento e, para os nossos hábitos, homossexual beijo boca a boca. A formatação dos hábitos espalha o incómodo quando somos confrontados com a mudança que se instala. Há gestos que são mecânicos: inspirar e respirar, desviar o olhar quando a audição recebe um ruído estridente, esboçar um sorriso de desdém perante as ideias patéticas dos políticos que enxameiam a comunicação social. E depositar dois ósculos em cada uma das faces das senhoras.
Apetece-me o especulativo exercício de descobrir as razões da moda do beijo ímpar. Só me ocorre que a economia do beijo reproduz a tendência da poupança de esforços que vamos cultivando. Um sinal de modernidade. Os afectos são economizados, pois perdemo-nos em minudências estéreis. São as novas prioridades: o trabalho, a carreira profissional, fermentos do desapego dos sentimentos pessoais. Há, no economizar de ósculos, a desumanização de nós mesmos. Dir-se-ia que o pragmatismo vingou: para quê repetir a função, se o objectivo se preenche com um singelo beijo? Ademais, o princípio encontra reciprocidade nos intervenientes do beijo. Quem o recebe contenta-se com o beijo ímpar, para a sua delicada pele facial não ser cansada com um segundo beijo desnecessário. Quem os pespega poupa beijos para outras ocasiões. Um basta para que a obrigação social esteja preenchida.
Ora, isto será lição para políticos e economistas que pregam no deserto quando divulgam a pedagógica mensagem da poupança. Tentam-nos convencer que consumimos de mais e poupamos de menos. Podiam empregar o exemplo do beijo ímpar. E explicar que, tal como na reconfiguração do uso social que faz com que teimosos homens fiquem de beijo suspenso na função cerceada pela metade, haveria que estender o economizador espírito ao que fazemos com o dinheiro. Às vezes, o exemplo vem do lado mais inusitado. Quem sabe se à custa da moderação oscular um dia seremos um país com mais poupança; logo, com luminosas esperanças de mais prosperidade. Seria irónico: como a poupança de beijos teria funcionado como o tão ambicionado milagre económico que nos é prometido há tanto tempo.