O dia chuvoso marcara encontro com o dia terminal daquelas quatro árvores. Despidas de folhas, que a invernia já tinha soprado todos os vestígios da folhagem num turbilhão que se espalhara pelo solo castanho. Dir-se-ia: a invernia desnudara as árvores como presságio do dia tão próximo do seu descenso.
Um demorado processo de poda precedia o golpe fatal. Os homens subiram às árvores. Empunhando barulhentas serras mecânicas, começaram a seccionar os galhos, uns finos e outros grossos, que subiam em direcção ao céu. As altivas árvores eram decepadas das suas extremidades. Sem um grito, nem um pingo de seiva fugidio, como se fosse lágrima furtiva exibindo a dor terminal das árvores sentenciadas. Estóicas, silenciosas, inertes – suportavam o trabalho árduo dos operários que as preparavam para o momento final em que perderiam o contacto com o nutriente solo onde estavam enraizadas.
Um a um, os galhos perdiam-se no vazio. Já fora do ângulo de visão, uns segundos mais tarde ecoava o ruído seco: o ramo a estatelar-se no solo. No cemitério dos despojos das quatro árvores, pacientemente esbulhadas de toda a sua vida. Era aquela a poda definitiva. Não tinha intenção de embelezar a árvore, de a expurgar de galhos excessivos que se contorcessem em direcções desalinhadas. A poda definitiva. Só os esparsos pássaros que por ali voavam e as ramagens do terreno vizinho eram testemunhas da sentença que se executava, demorada e paciente. Nem as estrelas, a coberto da noite que tinha dado lugar à manhã sombria, tinham sido chamadas para presenciar a despedida sem lamentos das quatro árvores.
As dores do progresso. A construção necessária: os edifícios que vêm albergar o bem-estar das pessoas. Por vezes, impõe-se o sacrifício das árvores. Vítimas inocentes da soberba humana – diriam os ávidos ambientalistas, eles sim doridos com o cenário que desfilava diante dos seus olhos. A lição de todos os dias: alguém suporta sacrifícios quando é projectado o bem-estar que há-de ser aspergido por alguns. De umas vezes, há pessoas convocadas para o ritual dos custos necessários, o ofício da redistribuição que merece inumeráveis loas dos demagogos. De outras vezes, seres vivos, mas inertes, são despojados da sua existência. Nuns casos como noutros, o altar sacrificial compõe-se sem lugar às palavras das vítimas.
Uma a seguir à outra, depois dos vários galhos que as engalanavam, as árvores tombavam com um fragor assustador. Só quando estivessem nuas, oferecendo apenas um insalubre tronco com os nódulos da madeira à mostra, podiam os operários desferir o golpe fatal. Pegavam numa serra mais poderosa, de onde silvos metálicos mais estridentes soerguiam no rumorejo da manhã. Uns breves minutos que pareciam tão longos, como todas as décadas acumuladas no tronco daquelas árvores. A serradura amontoava-se em redor da embocadura do tronco, uma serradura quente e humedecida pelas gotas da chuva que entretanto visitava o local. A marcha arrastada da serra mecânica era cadenciada, tragando a dureza da cilíndrica madeira onde assentavam as árvores.
O último veio, já sem forças para resistir à persistência da serra mecânica; o tronco tombava, majestoso, o garbo derradeiro das árvores que ornamentaram aquela paisagem particular. Não houve o festejo tradicional dos madeireiros, como se vê nos filmes. Ninguém gritou um efusivo “timber”. Os rostos fechados dos homens atarefados com a remoção das árvores denunciavam o seu incómodo. Afinal as árvores eram obstáculos ao que os esperava. Sem o perceberem, aqueles homens eram os primeiros espectadores do velório das árvores. O seu silêncio, uma doentia indiferença quando as quatro árvores, uma após outra, perdiam a ligação com as raízes que mergulhavam bem fundo na terra escura. Essa era a tarefa restante, o golpe mesmo final nas páginas dedicadas às quatro árvores. Foi a vez de um potente tractor solfejar a sua bravura, arrancando o emaranhado de veios que se entrelaçavam fora da vista dos humanos. O glóbulo enraizado, um misto de ramos e terra enlameada, desprendia-se da base. O ponto final.
Doravante, as estações vão estranhar a ausência das quatro primas árvores que estavam de vigia para as receber, as abraçar nos dias de cada uma delas, altivas na despedida quando se impunha abrir o calendário à estação seguinte. A perene condição do planeta: quando há vida que prospera na consumição mortífera do alheio.
Um demorado processo de poda precedia o golpe fatal. Os homens subiram às árvores. Empunhando barulhentas serras mecânicas, começaram a seccionar os galhos, uns finos e outros grossos, que subiam em direcção ao céu. As altivas árvores eram decepadas das suas extremidades. Sem um grito, nem um pingo de seiva fugidio, como se fosse lágrima furtiva exibindo a dor terminal das árvores sentenciadas. Estóicas, silenciosas, inertes – suportavam o trabalho árduo dos operários que as preparavam para o momento final em que perderiam o contacto com o nutriente solo onde estavam enraizadas.
Um a um, os galhos perdiam-se no vazio. Já fora do ângulo de visão, uns segundos mais tarde ecoava o ruído seco: o ramo a estatelar-se no solo. No cemitério dos despojos das quatro árvores, pacientemente esbulhadas de toda a sua vida. Era aquela a poda definitiva. Não tinha intenção de embelezar a árvore, de a expurgar de galhos excessivos que se contorcessem em direcções desalinhadas. A poda definitiva. Só os esparsos pássaros que por ali voavam e as ramagens do terreno vizinho eram testemunhas da sentença que se executava, demorada e paciente. Nem as estrelas, a coberto da noite que tinha dado lugar à manhã sombria, tinham sido chamadas para presenciar a despedida sem lamentos das quatro árvores.
As dores do progresso. A construção necessária: os edifícios que vêm albergar o bem-estar das pessoas. Por vezes, impõe-se o sacrifício das árvores. Vítimas inocentes da soberba humana – diriam os ávidos ambientalistas, eles sim doridos com o cenário que desfilava diante dos seus olhos. A lição de todos os dias: alguém suporta sacrifícios quando é projectado o bem-estar que há-de ser aspergido por alguns. De umas vezes, há pessoas convocadas para o ritual dos custos necessários, o ofício da redistribuição que merece inumeráveis loas dos demagogos. De outras vezes, seres vivos, mas inertes, são despojados da sua existência. Nuns casos como noutros, o altar sacrificial compõe-se sem lugar às palavras das vítimas.
Uma a seguir à outra, depois dos vários galhos que as engalanavam, as árvores tombavam com um fragor assustador. Só quando estivessem nuas, oferecendo apenas um insalubre tronco com os nódulos da madeira à mostra, podiam os operários desferir o golpe fatal. Pegavam numa serra mais poderosa, de onde silvos metálicos mais estridentes soerguiam no rumorejo da manhã. Uns breves minutos que pareciam tão longos, como todas as décadas acumuladas no tronco daquelas árvores. A serradura amontoava-se em redor da embocadura do tronco, uma serradura quente e humedecida pelas gotas da chuva que entretanto visitava o local. A marcha arrastada da serra mecânica era cadenciada, tragando a dureza da cilíndrica madeira onde assentavam as árvores.
O último veio, já sem forças para resistir à persistência da serra mecânica; o tronco tombava, majestoso, o garbo derradeiro das árvores que ornamentaram aquela paisagem particular. Não houve o festejo tradicional dos madeireiros, como se vê nos filmes. Ninguém gritou um efusivo “timber”. Os rostos fechados dos homens atarefados com a remoção das árvores denunciavam o seu incómodo. Afinal as árvores eram obstáculos ao que os esperava. Sem o perceberem, aqueles homens eram os primeiros espectadores do velório das árvores. O seu silêncio, uma doentia indiferença quando as quatro árvores, uma após outra, perdiam a ligação com as raízes que mergulhavam bem fundo na terra escura. Essa era a tarefa restante, o golpe mesmo final nas páginas dedicadas às quatro árvores. Foi a vez de um potente tractor solfejar a sua bravura, arrancando o emaranhado de veios que se entrelaçavam fora da vista dos humanos. O glóbulo enraizado, um misto de ramos e terra enlameada, desprendia-se da base. O ponto final.
Doravante, as estações vão estranhar a ausência das quatro primas árvores que estavam de vigia para as receber, as abraçar nos dias de cada uma delas, altivas na despedida quando se impunha abrir o calendário à estação seguinte. A perene condição do planeta: quando há vida que prospera na consumição mortífera do alheio.
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