12.1.07

Lisboa-Dakar, neo-colonialismo?


Declaração de interesses: o automobilismo é o meu desporto favorito. Contudo, não sinto a menor atracção pela aventura do Lisboa-Dakar. Há quem disserte longamente elogiando o espírito do rali-maratona que percorre um longo trajecto por desertos e savanas africanas. O formato não me agrada: pelos veículos envolvidos (nunca gostei de todo-o-terreno), por ser uma prova em que não contam os atributos de condução, mas a capacidade para poupar a mecânica e passar incólume pelas muitas armadilhas espalhadas pelo percurso.

O “Dakar” vai fazer trinta anos na próxima edição. Apesar de não lhe dedicar muita atenção, não me lembro de ser tão atacado pelas consciências do politicamente correcto como este ano. Alguns ataques partiram de cronistas domésticos que ofereceram uma argumentação delirante: o Lisboa-Dakar resume-se a uma deplorável exibição de neo-colonialismo, versão século XXI. Helena Matos no Público do passado sábado e um Cadilhe que escreve crónicas relatando a aventureira viagem que atravessa a África profunda, nas páginas do Expresso, são dois exemplos. Como é a segunda vez que o “Dakar” parte de Lisboa, é natural que certas almas que porventura desconheciam o rali aproveitassem a ocasião para destilar o seu fel, repito, politicamente correcto.

Surpreendente – ou talvez não – é a reacção da igreja católica. Que me recorde, nas anteriores vinte e oito edições do “Dakar” a igreja ignorou a aventura de motas, carros e camiões África dentro. Apesar de todos os anos haver mortos a lamentar entre concorrentes e público. Este ano o Lisboa-Dakar entrou para a agenda mediática da igreja. No L’Osservatore Romano, o editorialista saiu da sacristia, denunciando a competição nestes termos: "numa atitude cínica, que ignora por completo a realidade que atravessam, lançam-se no deserto automóveis, motos e mesmo enormes camiões, a velocidades loucas, cujos destroços ficam abandonados, muitas vezes, como monumentos à irresponsabilidade". Para engrossar uma estranha coligação – composta pelos habituais ambientalistas, detractores da globalização, certos espécimes da direita bolorenta lusitana e pela hierarquia eclesiástica no Vaticano –, o tiro no alvo. A igreja sentencia o Lisboa-Dakar, lançando-o na desgraça por "exportar modelos ocidentais para ambientes humanos e ecossistemas que, de ocidental, têm muito pouco".

Acho inquietante a ginástica mental que decifra sinais escondidos em ambientes que são tão simples, sem segredos. Sigo intrigado com a sanha persecutória contra as corridas de automóveis, com o detalhe da acusação neo-colonialista que pesa sobre o Lisboa-Dakar. A igreja não usou a expressão neo-colonialismo. Mas que outra conclusão se pode retirar ao ler a derradeira citação – "exportar modelos ocidentais para ambientes humanos e ecossistemas que, de ocidental, têm muito pouco"?

Temos que agradecer a estas luminárias que nos despertam do torpor. Não fosse o seu desassombro, a vocação para destapar o cobertor que esconde as verdadeiras intenções de uma prova tão insidiosa como o Lisboa-Dakar, e ficaríamos mergulhados na ignomínia, enternecidos com a aventura quase sobre-humana dos concorrentes do Lisboa-Dakar. Afinal, é tudo ao contrário. Os concorrentes são agentes infiltrados do neo-colonialismo. Estarão a soldo dos franceses, pois a competição é uma organização francesa; ora a França ainda digere mal a perda de influência mundial que sofreu depois da segunda guerra mundial e após a desagregação do seu império colonial.

E sigo intrigado, também, pela capacidade dos críticos descobrirem chifres na cabeça do cavalo. Ver no Lisboa-Dakar uma manifestação de neo-colonialismo revela uma miopia doentia. Tivessem a preocupação do rigor, houvesse um esforço de documentação dos factos, e teriam espaço para acomodar nas suas cabeças uma conclusão diferente. Primeiro, veriam que o Lisboa-Dakar é apenas uma competição desportiva. Segundo, poderiam entender que a competição não ofende os habitantes dos remotos locais africanos por onde passa. Os detractores ultrapassam a vontade dos governos dos países atravessados pela caravana do Lisboa-Dakar. Acaso houvesse o menor laivo de neo-colonialismo, os governos de Marrocos, Mauritânia, Mali e Senegal dariam permissão para o rali atravessar os respectivos territórios?

Da igreja, nos dias que correm, espero tudo. Alguém terá acordado mal disposto na sua cela monástica e decidiu investir a ira contra o Lisboa-Dakar. Porventura terão sido as primeiras imagens que essa caridosa alma viu ao pequeno-almoço. E se, em vez da cáustica análise, o Vaticano pensasse em inscrever um carro na próxima edição do Lisboa-Dakar, com o veículo preenchido por dísticos bíblicos e uma tripulação de sacerdotes que aproveitariam os tempos mortos entre cada etapa para evangelizar os demais concorrentes?

Só faltava explicar que no Lisboa-Dakar seguem os novos cruzados, intérpretes de uma cruzada malévola. A tentação terá sido refreada quando o editorialista do órgão oficial do Vaticano se lembrou das cruzadas África dentro, das missões de evangelização que espalharam a civilização cristã. Só resta esta pergunta: lá no Vaticano, não têm mais que fazer?

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

É curioso que embora não sendo um especial adepto do Lisboa-Dakar, não me apercebi de nenhuma dessas críticas, se é que assim se podem qualificar comentários tão disparatados.
Desculpa o desabafo, mas parace que está tudo doido!