16.1.07

A prosápia da Assembleia da República: o desplante da bandeira


Estão em todo o lado. São formiguinhas que porfiam, com a ambição de se livrarem da sua pequenez; tornarem-se conhecidos. Há gente que treina demoradamente os músculos inferiores das pernas, que há carência de se porem em bicos dos pés todos os dias. Só assim se fazem notados. Só assim ascendem – no trabalho, na carreira, na importantíssima escala social, tarimbados no tráfico de influências, as pancadinhas nas costas que tudo resolvem. O pulsar mais alta da mediocridade. À míngua de méritos próprios, desfazem-se dessa fraqueza mudando as regras a seu favor.

Há gente desta em todos os lugares. Gente cheia de ambição, sufocada pela ambição. O lugar onde muitos se contaminam com as práticas medíocres. Rivalizam entre si, esmeram-se para refinar a mediocridade com direito a resultados estrondosos. Mergulhados na rivalidade, puxam uns pelos outros, numa deriva sem retrocesso que nos abeira de um precipício sem fundo. Os mestres da mediocridade olham para o lado e observam o sucesso de outros ainda mais mestres. Incentivo para puxar lustro ao ofício e empurrar a bola de neve que segue, velocidade alucinante, ladeira abaixo.

A mediocridade presunçosa costuma andar atrelada à mania das grandezas. Que é a confissão do inesperado êxito. Por eles próprios admitirem que fosse apenas o mérito premiado, não haveria lugar a tais mordomias. Por isso, usufruem-nas com ostentação. Receosos que sejam regalias efémeras, afocinham e lambuzam-se no opíparo manjar que desfila diante dos seus olhos. Fazem lembrar esfaimados mendigos agraciados com uma refeição mirífica: a sofreguidão com que devoram o repasto, não vá, por magia, a comida evaporar-se.

Por mais alto que cheguem, há sempre mais um degrau que fica por ascender. Outra meta idealizada, nem que seja no recato dos sonhos, as horas em que a mente plana, assoberbada, numa viagem fantasiosa. É o espaço onde estas personagens que aspiram, no máximo, a um papel secundário se colocam no triunfante pedestal, com os demais na prestação da ubíqua vassalagem. No seu imaginário, são imperadores do seu império particular, onde só eles existem.

É disto que me lembro ao tomar conhecimento da invenção de uma bandeira para a Assembleia da República. Recordo-me de ler a notícia, que terminava de maneira lapidar (e cito de cor): “o presidente da Assembleia da República tem direito a ostentar a bandeira no seu veículo oficial”. Já o adivinho, garboso, sabedor que é a figura número dois do protocolo do Estado, a passear-se pelas ruas de Lisboa, olhar altivo, ciente das genuflexões que o povo fará de cada vez que tiver a felicidade de se cruzar com o automóvel que transporta sua excelência. Que interessa se o parlamento está desacreditado? Que interessa se o parlamento de há muito olvidou os princípios de representatividade que lhe deram origem? Que interessa se o parlamento é figura de retórica, onde se pavoneiam políticos em fim de carreira e tentam espreitar outros na terrífica luta do tirocínio partidário? A grandeza do parlamento desfaz-se nos sinais exteriores, nas bandeiras e nos lautos manjares que pretendem dignificar as carnes de um cadáver.

O episódio do fausto envaidecido da bandeira do parlamento é um sinal exterior de riqueza, mas uma riqueza de há muito ausentada. Olho para esta exibição de auto-encómio e apetece-me rir. E desfraldar bandeiras, para hastear a expressão idiomática que se põe a jeito do episódio: rir a bandeiras despregadas. Só resta rir de quem se tenta colocar em bicos dos pés no esforço para recuperar a dignidade que foi evanescente. Pode o penacho semear a ilusão da solenidade: o esmalte do formalismo ensina, o parlamento é um órgão de soberania. Apenas, porém, um vetusto lugar onde se passeiam tácticas partidárias e ambições pessoais, que já pouco cultiva o lugar de representação popular. Sonegar isto através de fogachos de vaidade é uma estéril manobra. Um esboço para alcançar o impossível: retomar a dignidade do parlamento, como se uma bandeira fosse o acto de prestidigitação suficiente; ou para refulgência do ego que detém carreira amorfa, discurso monocórdico, de alguém que atingiu o zénite e sabe, no seu íntimo, para além da matéria onírica, que mais alto não há-de subir.

A última gargalhada: com os socialistas em maioria no parlamento, este órgão de soberania passou a ter uma bandeira própria. Que, pelo seu formato, ressoa a monárquico. Talvez o presidente do parlamento tenha andado todos estes anos a reprimir a sua simpatia monárquica. Sem surpresa: pois se o candidato presidencial das esquerdas que conquistou mais votos também o fez há pouco tempo, eis o mote para a “monarquização” dos socialistas caseiros. Ironias do destino, ou manias das grandezas…

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

O Parlamento merecia, realmente, melhor sorte.
Quanto ao cariz monárquico da bandeira, devo dizer-te que há por lá mais monárquicos do que talvez imagines!
God Save the King!