É a desonestidade intelectual que faz a ponte entre os textos separados pelo fim-de-semana. O último teorizou sobre a desonestidade intelectual como expressão máxima das campanhas eleitorais onde as militâncias se empenham até ao tutano. No texto de hoje apresento quatro provas de como a desonestidade intelectual está ao serviço das causas em confronto.
Primeira prova, a mais deliciosa: João Teixeira Lopes, dirigente do Bloco de Esquerda, marchou pela marginal do Porto empunhando a bandeira dos adeptos da despenalização do aborto (mais a necessária pochette a tiracolo). Emblema partidário, o microfone tinha que se estender diante da sua boca. Avançava, passos compassados, desembrulhando o raciocínio: ser partidário da liberalização do aborto é uma questão de liberdade individual. No tempo de antena que lhe foi dedicado, dissertou sobre a liberdade individual, expressão que empregou várias vezes.
Não fosse este um mundo tão insólito, teria ficado boquiaberto ao ouvir um dirigente do Bloco de Esquerda a largar âncora na liberdade individual. Não fossem as campanhas eleitorais um monumento ao despudor, ou instantes onde o oportunismo tem o seu pináculo, e seria levado a acreditar que estava mergulhado num sonho: Teixeira Lopes a defender a liberdade individual! Aos que andarem distraídos, resgatem o ideário do Bloco de Esquerda e a sua retórica política. É suficiente para arranjar provas abundantes de como liberdade individual e Bloco de Esquerda estão nos antípodas. O oportunismo transforma tudo. Nestes dias em que o Bloco de Esquerda está activamente envolvido no referendo, o argumentário da liberdade individual – para dotar cada mulher grávida da soberania do seu corpo, sem mais interferências – é a maior das conveniências. Só que, no resto, liberdade individual não conjuga com Bloco de Esquerda.
Prova número dois: o pároco de Castelo de Vide ameaçou os paroquianos de excomunhão caso se abstenham ou votem “sim” no referendo. Invocou preceitos do Código Canónico e puxou lustro ao seu doutoramento em direito canónico para passar a imagem de homem cuja sapiência não pode ser questionada, ou a chancela da pretensa autoridade moral. Assim prosseguem pastores da igreja na senda do habitual: pastoreiam as consciências individuais, sem perceberem que o domínio da consciência de cada indivíduo é porta que a igreja não deve franquear.
O cura alentejano nem sequer percebe o manto do ridículo que sobre ele se abate. Será um holograma da inquisição perdido em pleno século XXI? Perceberá que os católicos já não são uma massa acrítica e ordeira, temente da ira divina caso as determinações do clero não sejam acatadas? Confiará o padre que os seus paroquianos lhe revelem todos os pecadilhos, até aqueles que entram no reduto do inconfessável? Depois da ameaça que fez, acredita que vai mudar a convicção de voto (ou de não voto) dos membros do seu rebanho? Não lhes deu um enorme incentivo para resguardarem o voto no seu íntimo, sob pena da fúria do sacerdote se abater sobre as ovelhas que tresmalharem e, na hora da morte, um enterro católico lhes ser negado?
A terceira prova regressa ao terreiro dos adeptos da liberalização do aborto: um ilustre advogado, muito empenhado na defesa dos direitos humanos, lembrou-se de uma metáfora disparatada para rejeitar um dos principais argumentos dos adversários do aborto. Como estes continuam a martelar na tecla do “embrião que é ser humano”, António Pinto Ribeiro saiu-se com esta: “não é o ovo que tem direitos, é a galinha”. Só falta agora um menino do coro da direita conservadora sair da toca a cavar mais fundo na indignidade, contra-argumentando: e o que fazer com os embriões assassinados, um omeleta?
A prova derradeira, na boca do beato João César das Neves. Em seminário dos detractores do aborto, puxou de uma das suas habituais hipérboles e concluiu, brilhantemente, que se o “sim” vencer, o aborto será uma vulgarização. Tão banal como os telemóveis, acrescentou. Podíamos ir mais longe no chorrilho de disparates e assegurar que o descarrilamento da virtude que a sociedade ocidental e materialista testemunha (para desgosto de beatos como César das Neves) fará com que casar e divorciar seja tão banal como comprar uns sapatos: compram-se novos, na excitação do momento; e deles nos desfazemos quando estão gastos, ou já nos cansámos deles.
Estes dias de dialéctica furiosa entre os dois lados da barricada são o terreno ideal para observadores do comportamento humano. De todos os lados, podiam vir até nós para estudar como a pessoa se entrega nos braços da estupidez ao militar com exuberância irracional numa causa. Aqueles foram apenas quatro momentos num mar de disparates que se repete todos os dias. Impõe-se a migração mental para outros quadrantes, portanto.
Primeira prova, a mais deliciosa: João Teixeira Lopes, dirigente do Bloco de Esquerda, marchou pela marginal do Porto empunhando a bandeira dos adeptos da despenalização do aborto (mais a necessária pochette a tiracolo). Emblema partidário, o microfone tinha que se estender diante da sua boca. Avançava, passos compassados, desembrulhando o raciocínio: ser partidário da liberalização do aborto é uma questão de liberdade individual. No tempo de antena que lhe foi dedicado, dissertou sobre a liberdade individual, expressão que empregou várias vezes.
Não fosse este um mundo tão insólito, teria ficado boquiaberto ao ouvir um dirigente do Bloco de Esquerda a largar âncora na liberdade individual. Não fossem as campanhas eleitorais um monumento ao despudor, ou instantes onde o oportunismo tem o seu pináculo, e seria levado a acreditar que estava mergulhado num sonho: Teixeira Lopes a defender a liberdade individual! Aos que andarem distraídos, resgatem o ideário do Bloco de Esquerda e a sua retórica política. É suficiente para arranjar provas abundantes de como liberdade individual e Bloco de Esquerda estão nos antípodas. O oportunismo transforma tudo. Nestes dias em que o Bloco de Esquerda está activamente envolvido no referendo, o argumentário da liberdade individual – para dotar cada mulher grávida da soberania do seu corpo, sem mais interferências – é a maior das conveniências. Só que, no resto, liberdade individual não conjuga com Bloco de Esquerda.
Prova número dois: o pároco de Castelo de Vide ameaçou os paroquianos de excomunhão caso se abstenham ou votem “sim” no referendo. Invocou preceitos do Código Canónico e puxou lustro ao seu doutoramento em direito canónico para passar a imagem de homem cuja sapiência não pode ser questionada, ou a chancela da pretensa autoridade moral. Assim prosseguem pastores da igreja na senda do habitual: pastoreiam as consciências individuais, sem perceberem que o domínio da consciência de cada indivíduo é porta que a igreja não deve franquear.
O cura alentejano nem sequer percebe o manto do ridículo que sobre ele se abate. Será um holograma da inquisição perdido em pleno século XXI? Perceberá que os católicos já não são uma massa acrítica e ordeira, temente da ira divina caso as determinações do clero não sejam acatadas? Confiará o padre que os seus paroquianos lhe revelem todos os pecadilhos, até aqueles que entram no reduto do inconfessável? Depois da ameaça que fez, acredita que vai mudar a convicção de voto (ou de não voto) dos membros do seu rebanho? Não lhes deu um enorme incentivo para resguardarem o voto no seu íntimo, sob pena da fúria do sacerdote se abater sobre as ovelhas que tresmalharem e, na hora da morte, um enterro católico lhes ser negado?
A terceira prova regressa ao terreiro dos adeptos da liberalização do aborto: um ilustre advogado, muito empenhado na defesa dos direitos humanos, lembrou-se de uma metáfora disparatada para rejeitar um dos principais argumentos dos adversários do aborto. Como estes continuam a martelar na tecla do “embrião que é ser humano”, António Pinto Ribeiro saiu-se com esta: “não é o ovo que tem direitos, é a galinha”. Só falta agora um menino do coro da direita conservadora sair da toca a cavar mais fundo na indignidade, contra-argumentando: e o que fazer com os embriões assassinados, um omeleta?
A prova derradeira, na boca do beato João César das Neves. Em seminário dos detractores do aborto, puxou de uma das suas habituais hipérboles e concluiu, brilhantemente, que se o “sim” vencer, o aborto será uma vulgarização. Tão banal como os telemóveis, acrescentou. Podíamos ir mais longe no chorrilho de disparates e assegurar que o descarrilamento da virtude que a sociedade ocidental e materialista testemunha (para desgosto de beatos como César das Neves) fará com que casar e divorciar seja tão banal como comprar uns sapatos: compram-se novos, na excitação do momento; e deles nos desfazemos quando estão gastos, ou já nos cansámos deles.
Estes dias de dialéctica furiosa entre os dois lados da barricada são o terreno ideal para observadores do comportamento humano. De todos os lados, podiam vir até nós para estudar como a pessoa se entrega nos braços da estupidez ao militar com exuberância irracional numa causa. Aqueles foram apenas quatro momentos num mar de disparates que se repete todos os dias. Impõe-se a migração mental para outros quadrantes, portanto.
1 comentário:
Parabéns pela isenção: dois exemplos de cada lado.
Acho o Bloco de Esquerda um monumento à hipocrisia, intolerância e oportunismo, mas o prémio da maior imbecilidade atribuo-o ao advogado António Pinto com a galinha e o ovo. Como deve ser difícil ser-se mais imbecil, ganha uma omelete cheia de salmonelas, para ficar fora de circulação durantes uns tempos.
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