Em França, uns castiços vieram para a rua em manifestação contra 2007. Confirma-se o estado da humanidade nos alvores do século XXI: somos muito exigentes. Tanto que até o impossível entra para o alfobre dos protestos organizados. É sinal de vitalidade. Será errado esboçar um sorriso de desdém, acenando com a cabeça, em tom de reprovação pelo que parece uma idiotice? É errado: há-de vingar o exercício criativo, que é disso que a humanidade carece para se escapar às águas furtadas do breu persistente que cinzela as nossas vidas, cada vez mais parecidas com simples vidinhas.
Os castiços franceses organizaram-se, pintaram tarjas e ecoaram palavras de ordem na rua. Contra 2007. Nada em especial contra 2007. Apenas não queriam que o ano antigo desse lugar a um ano novo, pela sugestão de envelhecimento que o novo ano transporta consigo. Queriam ser artífices da imortalidade do tempo. Queriam parar os ponteiros dos relógios, de todos os relógios do mundo, e certificar-se que enclausuravam o tempo.
Serão tementes da marcha imparável do tempo, dos segundos amputados até ao momento final destinado a cada um. Terão medo da morte. Ou serão, apenas, uns serôdios a quem a algazarra é o fito maior, tudo servindo para o lagar da chacota. Os que vêm o entardecer da vida descer tão vertiginoso são suspeitos: ambicionam que o tempo seja emoldurado numa fotografia. Tudo o demais continuaria a passar pelo crivo dos ponteiros. Os privilegiados seriam testemunhas do alto de uma poltrona, com o relógio parado, vendo a marcha do tempo só para os outros. Quando muito, gostariam que o tempo abrandasse. Prolongando os anos derradeiros até à consumição final, como se nesses anos vivessem mais para além do espartilho temporal.
O alarido desmerece vistoria detalhada? Suspeito que nos é dado a conhecer uma trupe que se delicia a gozar com tudo e com todos, até com o tenaz abutre aprazado para furtar as vidas dos encenadores da paródia. Ou talvez não. Ecoando tão alto os protestos contra a entrada em 2007, não é a beleza da vida o móbil da vozearia. Por um momento, imagino que há seriedade e convicção na causa. Poderá a imortalização do tempo ter o dom de impedir a evolução das coisas, o envelhecimento dos tecidos, a pele enrugada, a vista humedecida com a fria brisa matinal? Decerto gente contristada com a evolução dos tempos, com a sua marca indelével – o progresso, o trote incansável das tecnologias que remetem para o abismo quando nos achamos demodés. Gente que gostaria de parar o tempo para estancar o progresso que cresce em escala geométrica e asfixia na sua celeridade. Não será a morte que receiam; estarão cansados da evolução que anda mais depressa que o próprio tempo.
E se pudessem os governantes, por decreto, fazer a vontade aos manifestantes? Se um conciliábulo reunisse as mais altas figuras dos países e todos concertassem a redefinição do tempo? O calendário seria eliminado. Os relógios destruídos – e ai de quem ousasse desprezar o comando universal que determinava a entrega compulsiva dos relógios. Adivinha-se o caos? O que fazer aos horários dos aviões, dos comboios, de todos os meios de transporte? E os aniversários, onde seriam festejados quando as pessoas perdessem a noção do tempo? A pulsão anti-tempo daria azo a uma bem treinada polícia de costumes, vigilante em todas as esquinas, espreitando em todas as casas à espera de apanhar pessoas em contra-mão, na celebração de uma qualquer efeméride.
Os aviões descolariam quando lhes aprouvesse, os comboios teriam ordem para circular sem obediência a horários. Nada teria o tempo como medida. Até o vocabulário seria redimensionado: “nunca”, “até logo”, “daqui a uma hora”, todas as palavras que sugerem uma noção de tempo seriam banidas do dicionário, proibidas na utilização corrente. Tudo se passaria como tivesse eclodido uma gigantesca bomba de neutrões que aniquilasse a existência do planeta. Doravante, apenas contariam os sonhos, onde nada passava pelo crivo do efémero.
No imaginário dos demolidores do tempo, só lugar para degustar os momentos adocicados que vêm visitar as vidas. Houvesse lugar ao sabor amargo, indigesto, que o não efémero teria o condão de o perpetuar numa agressão constante e extenuante das pupilas gustativas da vida. Podem as divindades que fertilizam a criatividade tirar as barbas de molho. Olhamos ao espelho e vemos que os anos que dobram não escondem as marcas da vida acumuladas na pele, nos olhos, no cabelo, nas sofridas veias que se fatigam de curtir as asneiras, num coração mais cansado. Sinais do tempo que corre, imparável, rumo à sua foz.
O tempo. Tão fácil de emoldurar como o vento é aprisionado pelos dedos.
Os castiços franceses organizaram-se, pintaram tarjas e ecoaram palavras de ordem na rua. Contra 2007. Nada em especial contra 2007. Apenas não queriam que o ano antigo desse lugar a um ano novo, pela sugestão de envelhecimento que o novo ano transporta consigo. Queriam ser artífices da imortalidade do tempo. Queriam parar os ponteiros dos relógios, de todos os relógios do mundo, e certificar-se que enclausuravam o tempo.
Serão tementes da marcha imparável do tempo, dos segundos amputados até ao momento final destinado a cada um. Terão medo da morte. Ou serão, apenas, uns serôdios a quem a algazarra é o fito maior, tudo servindo para o lagar da chacota. Os que vêm o entardecer da vida descer tão vertiginoso são suspeitos: ambicionam que o tempo seja emoldurado numa fotografia. Tudo o demais continuaria a passar pelo crivo dos ponteiros. Os privilegiados seriam testemunhas do alto de uma poltrona, com o relógio parado, vendo a marcha do tempo só para os outros. Quando muito, gostariam que o tempo abrandasse. Prolongando os anos derradeiros até à consumição final, como se nesses anos vivessem mais para além do espartilho temporal.
O alarido desmerece vistoria detalhada? Suspeito que nos é dado a conhecer uma trupe que se delicia a gozar com tudo e com todos, até com o tenaz abutre aprazado para furtar as vidas dos encenadores da paródia. Ou talvez não. Ecoando tão alto os protestos contra a entrada em 2007, não é a beleza da vida o móbil da vozearia. Por um momento, imagino que há seriedade e convicção na causa. Poderá a imortalização do tempo ter o dom de impedir a evolução das coisas, o envelhecimento dos tecidos, a pele enrugada, a vista humedecida com a fria brisa matinal? Decerto gente contristada com a evolução dos tempos, com a sua marca indelével – o progresso, o trote incansável das tecnologias que remetem para o abismo quando nos achamos demodés. Gente que gostaria de parar o tempo para estancar o progresso que cresce em escala geométrica e asfixia na sua celeridade. Não será a morte que receiam; estarão cansados da evolução que anda mais depressa que o próprio tempo.
E se pudessem os governantes, por decreto, fazer a vontade aos manifestantes? Se um conciliábulo reunisse as mais altas figuras dos países e todos concertassem a redefinição do tempo? O calendário seria eliminado. Os relógios destruídos – e ai de quem ousasse desprezar o comando universal que determinava a entrega compulsiva dos relógios. Adivinha-se o caos? O que fazer aos horários dos aviões, dos comboios, de todos os meios de transporte? E os aniversários, onde seriam festejados quando as pessoas perdessem a noção do tempo? A pulsão anti-tempo daria azo a uma bem treinada polícia de costumes, vigilante em todas as esquinas, espreitando em todas as casas à espera de apanhar pessoas em contra-mão, na celebração de uma qualquer efeméride.
Os aviões descolariam quando lhes aprouvesse, os comboios teriam ordem para circular sem obediência a horários. Nada teria o tempo como medida. Até o vocabulário seria redimensionado: “nunca”, “até logo”, “daqui a uma hora”, todas as palavras que sugerem uma noção de tempo seriam banidas do dicionário, proibidas na utilização corrente. Tudo se passaria como tivesse eclodido uma gigantesca bomba de neutrões que aniquilasse a existência do planeta. Doravante, apenas contariam os sonhos, onde nada passava pelo crivo do efémero.
No imaginário dos demolidores do tempo, só lugar para degustar os momentos adocicados que vêm visitar as vidas. Houvesse lugar ao sabor amargo, indigesto, que o não efémero teria o condão de o perpetuar numa agressão constante e extenuante das pupilas gustativas da vida. Podem as divindades que fertilizam a criatividade tirar as barbas de molho. Olhamos ao espelho e vemos que os anos que dobram não escondem as marcas da vida acumuladas na pele, nos olhos, no cabelo, nas sofridas veias que se fatigam de curtir as asneiras, num coração mais cansado. Sinais do tempo que corre, imparável, rumo à sua foz.
O tempo. Tão fácil de emoldurar como o vento é aprisionado pelos dedos.
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