19.2.07

O povo necrófago


Haverá melhor passatempo domingueiro que desaguar em força nas margens de um rio onde jaz, desaparecido, o cadáver de um acidentado?

As famílias em peso descobriram entretenimento macabro para as suas parvas tardes de descanso dominical. Já vai quase uma semana que a automotora da linha do Tua se despenhou ravina abaixo, levando três vidas pelas águas tempestuosas do rio. Dois cadáveres foram encontrados. Um permanece desaparecido. O aparato das buscas é noticiado todos os dias, com o cortejo de botes, helicópteros, brigada de caninos, mergulhadores e bombeiros nas imagens em busca do corpo desaparecido. E temos direito, como bónus, ao funcionário do partido que teve em sorte a sinecura de governador civil de Bragança, nos momentos de glória nacional que jamais voltará a ter.

O povaréu, coçando a cabeça para descobrir onde fazer o costumeiro passeio de domingo, estudou o mapa. De perto e de longe, vieram famílias inteiras estacionar os automóveis na meia dúzia de quilómetros da estrada que desce até à foz do Tua. A estrada é sobranceira ao rio, que navega lá baixo, no fim do vertiginoso desfiladeiro. Um anfiteatro natural para testemunhar as operações de busca. O povinho estacionado diante da desgraça alheia dirá que é a sua manifestação de solidariedade com a família da vítima desaparecida. Estranha forma de solidariedade: sempre a necessidade de a exibir ruidosamente, com a presença carregada de palavras que apenas acentuam o sofrimento dos familiares. Quando o recato e o recolhimento seriam mais sensatos, esses sim no respeito pela dor de quem viu partir um ente querido.

É idiossincrático: o espectáculo espampanante da morte. O povo nem percebe que a oferta de boa vontade espalha uma tremenda dor que se soma ao sofrimento maior de quem é marcado pela morte de um familiar. Diria que a comiseração é a antecipação da morte de cada um: a obrigatória solidariedade, para que na nossa hora sejamos homenageados. Uma correia de transmissão que levita pelo tempo, de falecido em falecido. A morte, que por si chega pelo sofrimento que semeia, é este intemporal rosário de carpideiras – das costumeiras carpideiras que abancam nos velórios, e de todas as outras carpideiras que fogem à modalidade habitual mas espalham o odor tão característico dos funerais.

E depois há uma tendência irreprimível do povaréu: a atracção pelos locais da morte. Onde lhes cheira a cadáveres putrefactos, ou sabem que houve sangue derramado, espalhado pelo teatro violento onde um corpo se fez cadáver, temos a turba em romaria festiva. Não custa a crer que o povaréu tenha feito viagem em direcção às margens do Tua na secreta esperança de ver o corpo desaparecido emergir de uma fraga do rio, boiando com o dorso à mostra. Seria o pináculo de uma tarde de descanso, a sobremesa ideal para o repasto em família. E se há alturas em que apetece dar corda ao espírito de contradição, este é um desses momentos: apetece dizer, bem feito que o infausto homem não apareceu na tarde de ontem.

Porventura sociólogos, antropólogos e psicólogos têm explicações para o comportamento das massas, na sua incompreensível atracção pelos cadáveres. Nunca hei-de esquecer quando num fim de tarde avançava lentamente numa fila de trânsito, até descobrir dois carros que se tinham enfaixado um no outro. E de escutar, estarrecido, um protótipo do povo merdoso a dirigir-se para a família que o esperava dentro do carro, dizendo: “não vale a pena, nem tem sangue”. Este povo merdoso, necrófago, que exala uma falaciosa solidariedade pelo sofrimento de quem se despede da vida. Falacioso, pois no fundo tudo o que este povo medíocre deseja é ser abutre do sofrimento alheio, debicar com a sua grotesca curiosidade o estado terminal de quem se encontrou com a morte.

Conseguirá a gentinha dormir em descanso depois do festim macabro de que foi espectadora? Não a assalta uma poderosa insónia que afasta o sono para outras latitudes? É nestas alturas que percebo como o povo tanto gosta de sarrabulhos, cabidelas, enchidos com sangue, filmes de terror. Talvez sem o saber, o animal preferido deste povo desaustinado é o abutre.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Bem, eu adoro chouriças de sangue, mas detesto o voyeurismo macabro que provoca engarrafamentos para uns pacóvios verem uns bocados de chapa amolgada ou, pior, que fazem travagens bruscas na ânsia de verem um acidente e provocando outros.
P.S. Como não pertenço ao grupo dos "necrófagos", a minha ave favorita é a Águia, altiva, corajosa, imperial, dominadora.