7.2.19

Rosto de pedra (impassibilidade)


Sigur Rós, “Untitled #4 (Njósnavélin)” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bClxir4ElIg
Não havia o menor esgar. O rosto era sempre o mesmo. Imune ao sorriso. Dele não se podia espera um pranto, nem uma lágrima a adulterar a impassibilidade do rosto. Não se enfurecia. Não exibia uma vistosa irradiação quando as veias eram contaminadas pelo fervor da alegria. Era sempre o mesmo rosto. Igual. Imperturbável. 
Deste rosto se poderia afiançar pertencer a uma pessoa sem emoções. Mas não podia ser o caso. As pessoas têm emoções. Todas têm emoções. Admita-se a hipótese de pessoas que escondem emoções. Umas podem ser exímias na ocultação. Talvez esse fosse o segredo. Aquele rosto de pedra que não abdicava da pétrea pose era um mistério para os especialistas da matéria – os encartados nas emoções medidas pelo termómetro da expressão facial. Mas os peritos não conseguiam decifrar o enigma. Provocaram emoções no rosto de pedra. Não sentia dor. Não sentia prazer. Não exibia sinais de angústia, quando colocado em situações-limite. Não recaía no pânico quando era desafiado pelo medo. Se os peritos criavam cenários propícios à afirmação da alegria, nem assim o rosto se demovia da sua impassibilidade.
Constituiu caso de estudo. Convenceram o homem titular do rosto de pedra a passar horas a fio em laboratórios e em experiências no terreno onde se congeminam as relações entre as pessoas. Passou a trazer a tiracolo um séquito de observadores, animados pelo afã de registarem as suas reações, ansiosos por fotografarem (para memória futura e crédito da “ciência”) o mais tímido esgar. E o homem sempre com o mesmo rosto, petrificado, insensível. Alguns peritos começaram a duvidar do rosto de pedra. Teria de ser alguém à prova de emoções, o que não era consistente com a natureza humana. As teorias absurdas começaram a prosperar. Uns defendiam que o homem titular do rosto de pedra estava a fazer de propósito, escondendo as emoções e os esgares só para estragar o trabalho tão fecundo de tão fecunda “ciência”. Outros, não encontrando melhor explicação, avançaram a hipótese de o homem titular do rosto de pedra ser um extraterrestre. 
Quando, ao fim de inúmeras tentativas de explicar o fenómeno, depois de colóquios e colóquios em que o rosto de pedra era a pedra de toque que ameaçava minar a “ciência” da decifração das emoções através das expressões faciais, os peritos entraram em pânico. Não arranjavam explicação convincente – eles que estavam treinados para conclusões categóricas mesmo que fossem escoradas em provas frágeis. As explicações que ensaiavam medravam na impostura de quem se deitava a inventar teorias tontas só para justificar o lugar que a sua “ciência” havia conquistado (autoconquistado, como acontece com inúmeras “ciências” modernas) no panteão das ciências. Desesperados, os peritos perderam o norte. Abjuraram o homem do rosto de pedra. Acusaram-no de ser um vendilhão a soldo dos que acusavam de fazerem uma “caça às bruxas” (expressão que, no meio da desorientação, os peritos não avaliaram devidamente como denotativa do que se consideravam de si mesmos). 
Outros peritos, recusando o imersivo estado de autonegação, perceberam que só havia um modo de corrigir o seu desespero: juntaram-se no bar mais próximo e encomendaram umas cervejas “Desperados”. Foi remédio santo.

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