Spiritualized, “I’m You Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=4vNrHoLS1zc
“O que é feito da galocha?” Ninguém sabe dela. Está para ali, na arrecadação da carrinha, onde vão as sobras sem utilidade, a outra galocha. Solteira. É melhor procurar entre o entulho, só para confirmar se a galocha não se encontra submersa nos detritos que vieram para as escombreiras. Não está. As mãos encardidas são o aval. O entulho foi mexido e remexido pelas mãos contrariadas. A galocha está viúva. Que será do paradeiro da galocha ausente? No dia seguinte, depois do sono e a caminho de uma rotineira jornada, um dos passageiros despertou do torpor e exclamou: “está ali a galocha! Ali! No separador central da autoestrada!” O motorista não podia parar de repente para não causar um acidente, que àquela hora ainda muito matinal já o trânsito morde a paciência dos mais ensonados (ou talvez não, por estarem ensonados e, assim sendo, absortos). “O que fazemos? Saímos na próxima saída da autoestrada e damos a volta?”, perguntou o motorista, à espera da deliberação democrática dos demais. Os outros ficaram em silêncio. “Ninguém diz nada? Estamos quase a chegar à próxima saída.” Desconversaram com o silêncio. Não estavam interessados em andar às voltas, como se tivessem sido empenhados num labirinto e, ainda por cima, por causa de uma galocha, um objeto inanimado e com valor residual. Todos devem ter pensado, na imersão do seu silêncio, “assim como assim, um par de galochas não custa muito dinheiro”. Não conseguiram ter sossego durante a jornada de trabalho. Não paravam de pensar no absurdo da galocha que perdeu o par; estavam mais preocupados com a galocha que jazia, inerte e imunda, encostada ao separador de cimento da autoestrada. Nem sequer veio à ideia que a galocha sobrante já tinha sido despachada para o lixo. Se os seus estados de espírito fossem medidos por economistas, diriam que aquela foi uma jornada improdutiva. Quando regressaram, o motorista perguntou ao passageiro que tinha avistado a galocha pelo lugar em que a vira. “Foi mais ou menos por aqui...um pouco mais à frente.” No dia seguinte, ao passarem pelo mesmo lugar, o motorista abrandou e encostou-se à direita, preparado para estacionar na berma, se preciso fosse. A galocha tinha sido recolhida – ou teria sido projetada para o outro lado da autoestrada, conjeturaram alguns, na esperança de não ter sido destinada à fatalidade, a galocha. Aquele dia também foi muito improdutivo. Era o que se arranjava, com operários imbuídos de tão apurada sensibilidade.
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