Low, “Fly”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q5Enxzh-O9Y
Deixa lá as consumições, pega num livro e refaz o mundo em que teus pés assentam. Desenha no ar os contornos de uma onomatopeia, o vernacular proveito que abjura os contratempos. Há sempre remédio. Podes não querer um livro, por défice de leitura ou porque não te apetece. Não suprimas a possibilidade. Limita-te a adiá-la.
Em vez da onomatopeia, talvez tenha idêntica serventia amarrotar um maço de folhas, despedaçá-las contra a parede gasta enquanto o termómetro interior se alivia das febres más. Convoca os bons espíritos (se fores de acreditar em coisas tais): distribui-lhes, generosamente (ou talvez não), bom vinho, petiscaria selecionada, queijos que compõem a estética da mesa, doçaria conventual. Espera que te aconselhem. Se permanecerem mudos, substitui-te aos espíritos que se revelaram madraços (ou não se revelaram, de todo).
Não ponhas alvíssaras nas consumições. Delas te queres livrar, não têm cabimento chamamentos às alvíssaras. Não capitules perante a atração do que causa mossa. Sabes que existe um íman malquisto, insinuado nos estratos subterrâneos da alma, que te aproxima do que sabes exigir prevenção para como refém não te saldares. E sabes que desse desiderato não podes esperar nada de proveitoso. Se a precaução tivesse um trono, irias para os antípodas desse desiderato, a bem do teu bem.
Para o caso de falharem as onomatopeias, o estilhaçar do maço de folhas, a convocação dos bons espíritos, ou a prevenção contra os ardilosos remédios, dirige-te à biblioteca mais próxima. Deverá ser a que em tua casa se encavalita nos armários que servem para esse efeito. Não dirás que já leste todos os livros; não há nenhuma biblioteca no mundo de que se possa dizer que todos os livros já foram lidos – e muito menos pela mesma pessoa. À biblioteca pede de empréstimo um livro que está há longo tempo em lista de espera, ou que, com a espessura do tempo, tenha caído em olvido. Um, à sorte. E, à sorte também, abre-o numa aleatória página. Transcreve um parágrafo inteiro. Repousa vagarosamente sobre essas palavras. Reescreve-as (que o autor não saberá da tua diligência e não ficará ofendido, nem reclamará intervenção da justiça). Reescreve-as nas suas múltiplas possibilidades. Lança os dados no jogo das palavras que saem do labirinto do parágrafo; ou: arreda a cortina que se interpõe entre ti e as palavras e, com o seu redesenho, liberta-te desse labirinto. Verás que o que acabaste de congeminar não é pior estado de alma do que o que julgas em ti colonizado mercê das consumições que te assaltam.
Para o caso de falhar o precedido, que te sobre lucidez para recusares os delfos avulsos que acenam com milagrosos gurus de autoajuda. Responde que não acreditas em almas empenhadas, em milagres e no esoterismo da autoajuda. E volta ao livro, a um qualquer.
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