4.2.19

Argamassa


Grandfather’s House, “Drunken Tears”, in https://www.youtube.com/watch?v=zFq6aRK8xjw
Ficamos assim: o púlpito inacessível, os olhos gastos de tanto olharem para as tardes baças, e as pessoas em redor que não dizem nada – um lugar exaurido; ou, talvez, o lugar que nunca chegou a ser lugar, a não ser pela identidade de uma certidão de nascimento. A desidentificação medra e não parece ter retrocesso. Pudesse fingir, admitir o contrário do que as coisas trazem em si, pudesse até deixar os passeios rombos para os passos das pessoas que não dizem nada; e, no fundo, não é de rigor que este fingimento cuida: pois essas pessoas são a encenação dos antípodas de mim, não posso dizer que não me dizem nada se há aversão pelo seu modo de estar, pela prosápia de quem se considera predestinado por determinação do lugar, habitante num lugar que não tem meças na medida do bucólico, mágico lugar em que se entroniza.
Não sei se posso dizer que fiz o melhor de mim, que fui ao fundo das forças para inverter este estado de coisas. Não sei. Neste lugar, sinto que a argamassa foi mal congeminada e não consigo aderir aos rudimentos que ensinam uma identidade. Ou a argamassa está adulterada. Não quero assegurar que o mal é do lugar. Pode ser meu, uma aversão genética à argamassa que existe. 
Mas nem sequer posso garantir que a argamassa está adulterada. Olho em redor: a maioria revê-se nessa argamassa, cultiva-a como fenómeno que enraíza uma identidade. No filtro sem remédio, serei eu a peça fora do lugar? É muito provável. Que não represente esta confissão a oportunidade para os exacerbados da excelência do lugar decretarem a imperatividade de meu exílio. Posso não estar à imagem da cidade, mas ainda a sinto minha em determinados aspetos – aqueles que são ignorados pela matilha dos aduladores da excelência da cidade, aspetos imateriais e que se opõem a uma certa mitologia que serve para arregimentar os caudilhos desta soberba. 
Não sei se demandasse outro lugar, que me acolhesse como filho adotivo, seria suficiente para cultivar o cimento em falta. Um sedentário estatutário pode viver fora do seu espaço natural, que pode ser o nomadismo. Esta incapacidade para aderir à argamassa que cultiva a identidade pode ser o sintoma de um cosmopolitismo embebido nas funduras da alma. Para glosar o lugar-comum, serei “cidadão do mundo” (dando crédito ao encanto que trago de cada lugar extraído ao desconhecimento).

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