13.2.19

Fogo cruzado (short stories #94)


The Chemical Brothers” Got to Keep On”, in https://www.youtube.com/watch?v=rSYwtllbweY
          A tontura dilacerante embacia a lucidez: por instantes, é como se tivesse mergulhado numa anestesia e de pouco se lembrasse. Um ruído ensurdecedor continua a ser pano de fundo. As armas disparam incessantemente, numa demência sem freio a que os homens se entregam. A certa altura, já ninguém sabe onde está o fogo amigo e o fogo inimigo: as balas não têm cor e, no meio do fogo cruzado, elevada a probabilidade de homens morrerem derrubados por fogo amigo. As reminiscências vagas beijam a superfície da memória. Não era preciso resgatar as páginas da História que são o manancial da vergonha da espécie. O fogo cruzado existe, mesmo que não venha selado em balas vomitadas por revólveres obnóxios. Existe nas palavras tingidas a veneno, nos atos fingidos, nas mentiras compulsivas, nos ardis engenhosamente montados como cenário dos fingimentos desmultiplicados em fingimentos vários. Dizia: ninguém pode dizer que tem salvo-conduto do fogo cruzado. Algum desse fogo é letal; o seu maior quinhão deixa as vítimas em sobrevivência, a cuidar das feridas abertas. Às vezes, não se sabe o que é pior. Não sabia, contudo, apartar os efeitos malévolos das consequências irremediáveis do fogo cruzado. Por outras palavras: há fogo cruzado que se soergue no pescoço da honestidade – e as palavras ditas, do alto da sua frontalidade, são armas ásperas, cruentas, que dilaceram o corpo de quem elas se destinam. Dirá alguém, mais compassivo: agredir alguém com palavras ríspidas, apesar do seu contorno ser um retrato fidedigno, é de uma gratuitidade repulsiva; não tem serventia pelas excruciantes dores que provocam em quem elas atingem. Elas podem ser guardadas para memória futura, ou nem tanto: armazenadas na altivez generosa do íntimo de quem as concebe, no generoso ato de prevenir a angústia de outrem. É outra forma de fogo cruzado. As palavras que são restringidas no acosso do altruísmo podem torturar o interior de quem as castrou. É como se o revólver tivesse sido disparado contra quem premiu o gatilho. 

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