23.7.19

Desprazo de validade


Trent Reznor, Peter Murphy and TV on the Radio, “Dreams” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bZYjHsbSQpY
Já que se fala tanto de distopias: e se as pessoas, dando cumprimento à tendência de verificação constante do paradeiro que é intermediada pelas maravilhas da alta tecnologia, passassem a trazer tatuado o prazo de validade? 
Teríamos os defensores da medida, rendidos às maravilhas dos avanços tecnológicos e preparados para abdicar dos seus direitos de personalidade (ou, em não dando conta do dano, apenas inebriados pelas maravilhas da tecnologia que avança velozmente). Avocariam a causa a seu favor, sendo os primeiros voluntários a tatuarem o prazo de validade na pele. Não se importariam de saber a data da morte. Confessariam ser um incentivo para viverem a vida desafogadamente, com a intensidade de quem sabe ser a existência sempre curta, mesmo quando alguém atinge idade avançada. Outros, readmitidos à paz interior depois de uma cura com os préstimos de um mal-ajambrado guru de “autoajuda”, dir-se-iam preparados para abandonar o mundo dos vivos, motivo pelo qual até agradeciam que fosse tatuado o prazo de validade em zona do corpo visível.
Do outro lado, os que se insubordinariam contra a intrusão nos direitos de personalidade. A seu favor, diriam que ninguém deve arcar o ónus de saber quando vai deixar de existir. Seria uma forma de aprisionar as pessoas, como se sobre todas elas pesasse uma sentença de morte com prazo definido – uma sentença de morte disfarçada de eufemismo, o “prazo de validade”, como acontece como o mais banal dos produtos consumíveis. Nem sequer devia ser dada autorização a uma autoridade central que, deitando mão a dados compulsados por um supercomputador, conhecia o prazo de validade de cada pessoa. As vidas sujeitas a este ónus passariam a ser angustiantes e as pessoas, no afã de apressarem a vida sabendo da aproximação do prazo de validade, teriam a tentação de asneirar com frequência. O habitual padrão de disparate já é suficiente.
Sobrava a terceira hipótese (a minha preferida, pois abomino distopias): num ataque meticulosamente preparado por uma brigada de guerrilha urbana, formada para rebater o uso indevido de alta tecnologia sempre que dele resultasse uma intrusão na esfera individual, a brigada conseguiria roubar a base de dados com os prazos de validade de todos os habitantes do mundo. Destrui-los-iam sem remorso e sem possibilidade de recuperação. Os governos do mundo deixariam de contar com os dados que informavam o prazo de validade de cada pessoa. 
Daí em diante, todos podiam contar com um desprazo de validade. E levar as suas vidas sem o estigma de um prazo de validade. 

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