Egyptian Blue, “Collateral”, in https://www.youtube.com/watch?v=wvav-OeEhJU
Onze horas e cinquenta e nove minutos. Tomado pelo sortilégio dos números, e sempre pronto a encontrar um significado oculto numa combinação de algarismos, concluiu, sem hesitação: “não é hora ideal para jogar”. E antes que as dores do azar requeressem uma morfina qualquer (normalmente, o ensimesmar que protelava o arrependimento), pôs-se a fazer cálculos complexos, no âmbito da sua privativa cabalística, para determinar a hora certa.
“Pelas minhas contas, às treze horas e sete minutos é a altura certa.” Saiu de casa, não fosse dar-se o caso de um trânsito inesperado barrar o caminho e não pudesse estar a horas no casino. Correu tudo bem. Até à porta da entrada do casino. Saiu cabisbaixo e com a conta bancária aliviada de umas centenas de euros. Estava cabisbaixo não pelo dinheiro perdido. Essa é a genética dos jogos de azar. Estava cabisbaixo, porque tinha quase a certeza de que os cálculos estavam certos (talvez um paradoxal oximoro, portanto). Naquele emaranhado que era a combinação de equações e significações enigmáticas para os algarismos, e com o seu domínio da matemática, como podia o jogo correr mal? Afinal, as equações e as significações não eram à prova de bala. “Nem podiam ser” – sussurrar-lhe-ia, num canto recôndito do seu eu, um alter ego, não fosse acontecer ele ser tão possessivo de si mesmo que não deixava espaço para as dores de consciência. Isso, e a teimosia numa matemática quase astrológica, ou onírica, explicava como esbanjara tanto dinheiro desde que se deitou aos jogos de azar. “Nem podiam ser”, insistia a suposta voz interior a fazer as vezes de incómoda consciência, “se não, ou os jogos de azar já tinham desaparecido, ou mais gente tinha feito fortuna à custa dos casinos.”
Interiorizou a expressão “jogos de azar”. Pela primeira vez. Como é que nunca olhou com atenção para a conjugação de palavras que compõe esta expressão? “Jogos de azar”. E disse-o, numa voz interior que se repetia à exaustão, até a expressão e as palavras integrantes começaram a perder sentido. “Como se pode chamar jogos de azar a jogos que dão fortunas a quem é afortunado? São jogos de sorte, essa é que é essa!”, numa exclamação que soava à necessidade de legitimar a pulsão pelo jogo.
A caminho de casa, já só fazia contas de cabeça aos cálculos alimentados pelas equações de que fora arquiteto, assim como à grelha de análise que inventara para fazer corresponder significações aos algarismos. “Tem de haver um buraco negro no sistema”, insistiu na legitimação interior. E, em vez de perceber o significado da expressão “jogos de azar”, continuou a porfiar na sua quimera particular, julgando aperfeiçoar, de cada vez que saía vencido do casino, a miríade de equações que não era o segredo para a fortuna.
Os jogos de azar eram mesmo de azar. E à prova de qualquer ensaio cabalístico.
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