Lena d’Água, “Hipocampo”, in https://www.youtube.com/watch?v=4i8IPDbJQAw
O rumor. Avassalador. Estás por dentro dos teus atos e sabes que o rumor não tem linhagem. Mas o rumor espalha-se com a facilidade de um miasma. Quem acredita não quis saber do contraditório. Como o rumor era avassalador, passaram por cima do resto – das memórias, do conhecimento, de um módico de confiança – e selaram o teor do rumor com chancela fidedigna. Estás desorientado. Olham-te com desconfiança, evitam-te na rua e nos cafés, nos restaurantes já não és servido com deferência. À frente do corpo sentes habitar um terrível abismo para onde foste atirado com o selo soez da injustiça. Para piorar, estás emudecido. Podias ripostar. Defender a tua honra. Talvez a mudez tenha a ver com o teu compromisso com a ética da lei. Aprendeste que o acusado não tem de provar a inocência. É este imperativo com os princípios em que foste educado que te silencia. Contra ti mesmo. Devias saber que o sentimento comum fermenta numa teoria da facilidade: as pessoas preferem o que é fácil, que se sobrepõe à maior complexidade justaposta aos princípios. O rumor foi fulminante no apuramento do sentido que as pessoas atribuíram à sua verosimilhança. Não querem saber da verosimilhança do rumor. O rumor fala mais alto. É um ato compulsivo da decadência impante. De repente, regressas a Kafka (“O Processo”). Reivindicas o lugar da vítima do enredo. Por mais que puxes pela cabeça, não consegues entender o rumor e por que alguém o irradiou. No apogeu da desorientação, perguntas se não terias sido invadido pela desmemória e o ato de que vens acusado, e de que não tens memória, tenha acontecido. Interrompes a especulação a tempo. Não podes responder por exercícios especulativos que extravasam os sentidos. Dás como garantido que o ato de que consta o rumor não aconteceu. Agora queres defender a honra. Imaginas um referendo organizado por meios teus. Perguntarias, tão simplesmente, se acreditam na tua culpa ou na tua inocência. Paras a tempo. Os referendos não foram feitos para julgar ninguém. Nem tu precisas de julgamento. Deixas o rumor para os seus fautores e para quem lhe deu rédea longa. Eles é que são devedores de justificações.
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