David Bowie, “Modern Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=HivQqTtiHVw
Para memória futura: deixam as palavras o seu selo, eternizado no papel que as hospeda. Pode ser a inspiração do momento, um pensamento avulso, a advertência necessária contra as pedregosas avenidas do mundo, o estado de arte, a miragem que não se consome por dentro de um sonho, umas estrofes não pretensiosas, o arrematar de uns pensamentos sem paradeiro que se constituem num enredo improvável, uma janela que se representa como varanda curvada sobre as faldas do mundo, a prova do amor (como se fosse preciso prová-lo por palavras escritas) ou o espelho do desamor.
Ou mnemónica: o antídoto do oblívio, que o tempo desgasta a memória e é preciso convocá-la para definir os limites e os deslimites. Contra a irregularidade dos acontecimentos bolçada pela memória atraiçoada, ou intencionalmente deformada. Mnemónica que gravita no caderno diário, nos seus vários volumes, que recebe as anotações meticulosas de quem tem medo do esquecimento. Uma memória descritiva, para a geografia do tempo não ser em vão.
Ou o caderno diário como representação do passado. Sem medo dele. O caderno que fala pelas falas que se perdem na bruma que condensa o tempo pretérito. Alguns, possuem o caderno diário para reinterpretar os acontecimentos que tiveram lugar, para reescreverem as palavras que foram ditas. Não honram o caderno diário. São farsantes que usam o caderno diário para redesenharem a história que julgam não ser digna deles, cinzelando-a a seu proveito. Desconhecem que eles é que desonram a história, quando mentem com todos os dentes e vertem por escrito a mitomania sem remédio. Está para saber se há biografias que recusam o leve odor a hagiografia e retratam alguém por defeito.
O caderno diário não tem de ser diário. É quando apetecer. Um formulário que abraça o olhar vivaz. Exercício contrafactual de todo o tempo que é escrutinado (faltando saber daquela parte que ficou de fora). Sem apagar nada. Sem transfigurar o que se passou, para a mácula não cair sobre o dorso dos escreventes. Um caderno diário que é a faina do tempo a propósito, ou quando aprouver, para a distante configuração do tempo.
É um legado, para consumo próprio. Ou apenas um exercício heurístico, para derrotar o mundo que teima em ser obnóxio.
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