8.7.19

Teoria do apocalipse permanente (ou: teoria permanente do apocalipse)


Nils Frahm, “My Friend the Forest”, in https://www.youtube.com/watch?v=d99p-SPn5Tc
(Mote: Mão Morta e Inês Jacques, “No Fim Era o Frio”, Teatro Aveirense, 29.06.19)
Será mais confortável imaginar cenários distópicos, o pressentimento do apocalipse com prazo de validade no horizonte, do que insistir na ladainha que é a vida, que para uma multidão não passa de vidinha?
O descontentamento com a humanidade no seu estado contemporâneo, e a ideia de que os vícios são fundos e incorrigíveis, fornece o substrato para o presságio do apocalipse. Há toda uma arte que parte da premissa do falhanço da atualidade (na sua transfiguração de modernidade) e que, assente na descrença do potencial de mudança necessário para corrigir este estado de coisas, alinhava os rudimentos de um mundo hediondo, um mundo que se encaminha para a extinção. Não são confortáveis as distopias assim narradas. Elas alimentam-se da intensa propensão para a autofagia. Ao mesmo tempo, funcionam como um choque térmico. Servem para apoquentar as consciências – as que ainda não estão apoquentadas e as que, já estando, se sobressaltam mais uma vez no pressentimento do que poderá vir a ser o último dia do mundo e o processo trágico que nos conduzirá a essa fatalidade.
A distopia tem conotação com o frio. Do frio que penetra até à medula, ao ponto de anestesiar as pessoas refugiadas num último reduto à espera do dia derradeiro. O frio insensibiliza-as para as coisas terríveis que destroem o mundo metro a metro, inexoravelmente. Configurando as dores excruciantes que seriam sentidas caso não houvesse o frio como anestesiante, até o amor se joga num jogo de contrários com o pressentimento do fim do mundo. Do amor ausente, desconfigurado, do amor extraído ao catálogo de emoções e do vocabulário. Como pode uma distopia condensar o cenário funesto com a prodigalidade do amor? Só se for para dar ênfase ao palco onde ambos se jogam, contraditórios: os ventos, que sussurram o apocalipse que não demora, não deixam espaço para o amor. A extinção do amor é um ingrediente do pressentimento do apocalipse.
Interiorizo o enredo medonho, agravado por uma narrativa que se serve de recursos estilísticos que exageram a distopia – os detalhes macabros, a orgia de violência, assim consagrada como sinal do fim dos tempos, a morte vista do exterior do sujeito num aparatoso cenário que se embebe nas golfadas de sangue que jorram do corpo mutilado por uma criatura extraterrestre e que termina com a decapitação do sujeito, e a sua confissão, ainda incrédulo, de ter a impressão de ter morrido. 
Tinha quase a certeza de que ia ter pesadelos densos durante a noite.
Afinal, os pesadelos desviaram a rota. A teoria permanente do apocalipse pode ser uma manifestação de esperança que um cético lavra para memória futura. Será mnemónica não acidental ao cuidado de mandantes e de poderosos, os que podem evitar que se acentuem as terríveis imperfeições que nos conduzem para um abismo sem retrocesso. É, nesta medida, um paradoxal pulsar de esperança. Se a distopia encenada servir como aviso que caia fundo nas consciências de mandantes e de poderosos e, ato contínuo, eles se lembrem que ainda vão a tempo de salvar o mundo. O nosso mundo, que é também o mundo deles.

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