30.7.19

Falhamos – e depois?


Sigur Rós, “Varðeldur”, in https://www.youtube.com/watch?v=sBubnbNFyW0
“Primavera Selvagem”, de Arnold Wesker, Teatro Nacional São João
Não interessa o axioma: “quem nunca falhou que atire a primeira pedra”. O falhanço é inato. Corre no sangue. Não é intencional. Quase nunca: quem, no seu juízo, comete um ato ou profere palavras com o propósito de se magoar, saindo de cena com a impressão de ter falhado e de o malogro se dever à intencionalidade dos atos ou das palavras?
No imenso, emaranhado jogo da vida, não sabemos das consequências dos atos e das palavras. É uma aposta no escuro. Por isso é que os mais prudentes jogam à defesa, com receio de que o risco quadre com uma miríade de falhanços. Evitam decisões. Preferem ficar no estado minimalista em que se encontram em vez de se fazerem à vida, de transfigurarem a vida para melhor. Têm medo que saia o contrário do pretendido. Timoratos, ficam onde estão. Apesar de não estarem satisfeitos com o estado atual de coisas que é o palco que pisam – apesar de viverem aprisionados numa melancolia que parece imorredoira.
Se nos mentalizarmos que estamos fadados para o fracasso, não somos atordoados pelo macilento ónus da indecisão. O que sabemos? Que a imperfeição consanguínea não se desafeiçoa de nós. Devemos calcular a forte probabilidade de os atos ou de as palavras não terem o efeito desejado e somos assaltados pela angústia do malogro. Não é confortável ser confrontado com o sabor acidulado do fracasso. Mas um fracasso não é uma pedra tumular que se abate sobre o indivíduo momentaneamente falhado. É um intervalo na opacidade da vida. Uma exigência dela. Imagine-se o contrário: imagine-se alguém com o pressentimento da perfeição, com um percurso imaculado; como pode essa pessoa reivindicar tamanha pureza da vida se nunca travou conhecimento com o falhanço?
Sim, falhamos. E depois? Voltamos a falhar depois, se preciso for. Ao menos, não ficamos reféns da dúvida perene, da interrogação que adeja sobre os limites da consciência, a pergunta que esbarra no peito e o deixa em ferida, a pergunta que abre o nó górdio da contrafação do que poderia ter acontecido se a decisão tivesse rompido as baias da indecisão. Falhamos e voltamos a falhar, as vezes que forem necessárias. Entre os falhanços, colhemos matéria fértil, a aprendizagem irrecusável, a madurez que nos ensina a saber da vida quando, de outro modo, à sua mercê ficaríamos. Não nos esqueçamos da advertência do poeta:
(...) mas não te importes
não te importes 
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso.
Mário Cesariny, “De profundis amamus”.

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