Fat White Family, “Tastes Good With the Money”, in https://www.youtube.com/watch?v=VLTWNfyMS5Y
A rua tem fim estreito. Afunila, nessa altura. Dir-se-ia que não quer desistir de ser rua, apesar de os eruditos lhe dizerem que todas as ruas têm um fim, ou porque são meros afluentes de avenidas, ou porque entroncam noutras e com elas constituem encruzilhadas que os transeuntes têm de decifrar. A rua teimosa e ufana de sua condição não acreditava nestas sensatas palavras. Talvez quisesse ser avenida, ela mesma. Afinal, trazia consigo o nome de um emérito patriota que, em seu tempo, foi herói consabido. A rua tinha melhor patrono do que muitas avenidas, que não foram batizadas com nomes de gente tão importante na história coletiva, ou apenas carregam no dorso nomes que ressoam a valores hoje um pouco gastos.
(Pelo menos se estiver certo o discurso do presidente russo, há dias, que garantiu ser o liberalismo um anacronismo.)
No fim estreito, a rua não desaguava numa avenida. E ela sentia-se confortável por não ser mero afluente de uma avenida porventura batizada com o nome de uma personalidade menos personalidade do que o nome do patriota que trazia a tiracolo, ou com o nome de um valor gasto com o tempo (liberdade, porventura). Era um braço de uma constelação de ruas, paralelas umas às outras. Não havia ali estatuto que diferenciasse as ruas que faziam parte desta rede. E os nomes das ruas em redor não se distinguiam pelos feitos que eram atribuídos às pessoas que eram suas tutoras, em comparação com a rua em apreço. Era uma rua que atribuía muita importância aos pergaminhos. Tinha a mania das grandezas.
Esta rua, como as outras que constituíam a miríade em rede, era transversalmente cortada por uma avenida. Por isso, a avenida chamava-se transversal, o que não era de grande garbo para a identidade da avenida que teve a incumbência de seccionar todas aquelas ruas em duas partes. A rua em si não se incomodava com esta barcelonização: não era por estar seccionada em duas partes por uma avenida que desenhava a cidade que lhe retirava identidade. O que a desassossegava era saber-se penhora de uma encruzilhada quando o seu término tinha lugar. O diagnóstico era um equívoco, contudo. No seu final, a rua dava origem a duas outras, como se estas fossem as filhas dadas em herança. Mas a rua, alarmada com os estipêndios das medalhas norankingdas ruas da cidade, passava ao lado desta que seria a questão relevante. Passava ao lado da sua têmpera, contudo escondida.
A rua tinha insónias só de saber como podiam os forasteiros, e os habitantes da cidade pouco treinados naquela zona, saber por onde iriam ao chegar ao término da rua. Este é o problema das encruzilhadas. As pessoas têm de escolher um dos caminhos. Saibam ou não por onde vão. E essa angústia, apesar de atingir terceiros, era um desassossego para a rua, na impossibilidade de se prolongar, talvez através de um viaduto, para além das duas ruas que dela dimanavam.
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