Mão Morta, “Barcelona”, in https://www.youtube.com/watch?v=I8DcH-uOJss
De repente, um medo azedava a boca. Dizias: “sossega. Não vou deixar entrar o mar.” Não estava em causa. A maresia era um conforto. Tirava as forças ao tédio que parecia pintar as paredes com um musgo ensurdecedor, um musgo que embaciava as estrofes por onde o olhar se compunha. Eu dizia: “só não quero que pintem o mar.”
As bandeiras arrematavam o céu. Parecia que só havia bandeiras, nada de céu. Uma ilusão que disfarçava o viés do olhar. Podia ser que fossem iguais, os lugares. Podia ser que às mesmas horas fosse feito tudo da mesma maneira. Ou que palavras mecanicamente entoadas fossem a resposta a circunstâncias escritas em roteiro. Não importava. À boca de cena, a vontade de erradicar o tédio era imperatriz. Havia sempre um lampejo de imaginação a fermentar nos interstícios da ação. O pensamento não dorme, nunca.
A povoar o imaginário, paisagens, excertos de poemas, uma cena marcante de uma peça de teatro, o rosto emoldurado nos contrafortes da memória, avivado a tinta-da-china, a simplicidade de um beijo na boca sedenta. Dois ou três fragmentos vívidos de uma conversa, o chamamento do porvir, a farta dança do tempo presente, uma coreografia irrecusável. Juntavam-se os vestígios do eu que não capitulava perante a fácil tentação do tédio. Era preciso destoar. Uma insubmissão afinal não tão exigente como se podia arbitrar. Não é preciso ser perito: assim como assim, as notas de música sucediam-se na exata medida da maior ou menor aprovação da música, e não era preciso saber nada de música para adestrar um juízo estético.
“Se ao menos voasse...”, atiraste, com o ar pensativo de quem parecia imersa num sonho distante. Desafiei-te a completar a frase. Ouvi o silêncio. Talvez fosse um desafio para mim; minha, a incumbência de completar a frase – como se fosse uma escrita a quatro mãos. Arrisquei: “...tirávamos, juntos, a fotografia do mundo e guardávamos no cofre, parte do nosso tesouro.” Vi lágrimas furtivas humedecendo umas linhas erráticas que se desprendiam dos olhos. Sequei-as com os meus dedos. Não havia nada de compulsivo na comoção, nem era dar parte de fraco. Reforcei a ideia: “despojamo-nos dos artefactos, recusamos as distrações que são insinuações dos capítulos que, afinal, não interessam, e partimos – partimos ao acaso, no avulso do tempo que nos vem às mãos, sem mapa. Como só nós sabemos.”
Sem sabermos dos ventos que sopravam, espreitávamos o rosto do dia que se deitava à medida que a primeira luz diurna tomava conta do dia. Era mais um dia (talvez fosse esse o anúncio do pequeno-almoço). Os dias nunca são iguais. Por mais que o pareçam.
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