29.7.19

“Esqueci-me do futuro” (short stories #131)


Mark Ronson ft. Lykke Li; Late Night Feelings”, in https://www.youtube.com/watch?v=OpNJTr7q1LM
          “O coldre é o meu arnês”, dizias, com orgulho. Vias como eram usadas as armas e ficavas encantado. E, todavia, não havia nada que respirasse confiança. Pressentia que transpiravas a passado, incapaz de coabitar no âmago da tua alma. Repetias: “o coldre é o meu arnês”, e metias as mãos nas algibeiras de onde trazias um nada impressionante. Talvez estivesse eu errado. Havia uma dissonância que armadilhava as conversas. Habitualmente, discordávamos. Não que isso fosse de desaproveitar. O que inquietava era a forma (não a substância) das discordâncias. Era preciso estar sempre de atalaia, antecipar a jogada do outro que ia acontecer daqui a três movimentos. Escusado será dizer que nada acontecia com a espontaneidade que devia ser mote. Tu continuavas agarrado a uma conspiração geral que cobria o mundo inteiro e que, suponho, te locupletava o sono. Eu – dizias, ripostando ao meu, porventura, impertinente diagnóstico – era um ingénuo, um desprendido das coisas do mundo, incapaz de perceber o que estava à minha volta e, invariavelmente, uma presa fácil dos mastins que o tomaram de assalto. Nunca retorqui. Não quis. Não era importante. Preferia que usasses as implacáveis acusações como escudo para tua proteção. Não esperava reciprocidade, pois não há (e digo-o: felizmente) duas pessoas iguais. Um dia, atormentado por uma conjuntura de mau humor, devolvi acusações. Sem negar o labéu que sobre mim arremessaste, não ficaste sem resposta: “o teu problema, o teu maior problema, é que já te esqueceste do futuro e ele ainda não teve lugar.” Ficaste indefeso. Não conseguiste balbuciar umas palavras em teu amparo. Nesse dia, nem sequer dissemos adeus. Até hoje. Todos estes anos depois (tantos que deles perdi a conta), ainda vem à memória a contundência deste episódio. Talvez estivesse destinado a que seguíssemos caminhos diferentes e a indiferença fosse o epílogo que nos esperava. Não tenho a ideia de em mim medrar o mínimo arrependimento. Nisto, não há acasos. Se o tempo pudesse voltar atrás, repetia que te esqueceste do futuro e ele ainda não tinha acontecido. Como as imagens do tempo trataram de apurar. O que nunca te ouvi dizer, foi “esqueci-me do futuro”. Proponho que seja o teu epitáfio.

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