25.3.08

Dez milhões de funcionários do fisco?


Outra para o compêndio da paródia instalada: o governo mandou dizer que o fisco vai controlar, com redobrado zelo, as despesas feitas em casamentos. Porque as bodas são negócio próspero – há quem goste tanto que se casa vezes sucessivas – e porque há muita gente metida no negócio das bodas que, ó heresia, foge impunemente aos impostos.

Já seria do domínio do ridículo saber que o fisco vai estar de olhar vigilante às bodas do Minho ao Algarve, à procura de meliantes que escapam ao jugo dos impostos. Não haverá outros domínios onde a fuga aos impostos custa mais ao erário público? A coisa atinge os píncaros do ridículo quando se soube que alguém, um burocrata qualquer certamente dotado de escassa imaginação, descobriu a melhor forma de acabar com a impunidade fiscal no negócio das bodas. Serão os próprios noivos que, em trinta dias, terão que comunicar à administração fiscal um infindável rol de transacções: desde o vestido da noiva ao fotógrafo, o catering contratado às prendas recebidas, exigindo-se até a apresentação de cheques que comprovem os gastos ou os proventos da cerimónia.

A farsa está aqui: quem se casar fica coagido a ser funcionário do fisco. Pois os noivos que, ainda inebriados com a fulgurante lua-de-mel, se esquecerem de comunicar o imenso catálogo de detalhes exigidos pelo fisco, arriscam-se a pagar “coima” que pode ir até dois mil e quinhentos euros. Ou seja: os casados de fresco são obrigados a trabalhar para o fisco e não recebem nada em troca (possivelmente a gratidão do fisco). É como se os noivos fossem cobradores de fraque no seu próprio casamento. Eu acho que isto mostra duas coisas: primeiro, a enorme preguiça do fisco, que em vez de alistar um exército de novos funcionários que passariam em revista os casamentos de norte a sul, endossa a tarefa para os próprios noivos; segundo, uma concepção duvidosa de meios e fins, pois não parece que a sede de receita de impostos justifique tantas intromissões em detalhes que pertencem à vida íntima de duas pessoas que acabam de contrair matrimónio. O que interessa saber quem pagou o vestido da noiva? O que interessa saber quem (e quanto) presenteou os noivos?

Começo a perceber a medida tragicómica. A vontade da equipa do secretário de Estado das contribuições e impostos (que ontem apareceu diante das câmaras da televisão em atrapalhadas explicações) era espalhar espiões do fisco nos bastidores dos casamentos. Por cada casamento, um funcionário da repartição de finanças a controlar tudo e mais alguma coisa: anotaria o nome da empresa de catering, do local onde foi feita a boda, do nome da costureira que concebeu o vestido da noiva, do alfaiate que vestiu o noivo, de quem se encarregou da reportagem fotográfica, dos entertainers que vieram abrilhantar o baile costumeiro, da florista que embelezou o lugar com uma coreografia floral. Não sei se me escapa algum detalhe, se não haverá algo mais que envolva dinheiro que passa dos noivos para empresas ou particulares que fornecem serviços ou bens típicos de casamentos.

Só que esta vontade do fisco terá esbarrado no exagero da intervenção: inconcebível seria que houvesse cobradores de fraque escalados para cada casamento e que tivessem carta-branca para vasculhar fornecimentos e pagamentos. Então os imaginativos que dão o seu melhor para que o Estado arrecade muitos impostos tiraram um coelho da cartola: e por que não endossar a tarefa para os noivos? Assim como assim, o paradoxal Estado de direito inverte o ónus da prova quando está metido num conflito com um contribuinte. É que, normalmente, quem acusa tem que provar. Quando o fisco acusa alguém de estar em falta com os impostos, o acusado é que tem que provar que tem cadastro imaculado. É nesta lógica que os desgraçados que vierem a contrair casamento passam involuntariamente a ser funcionários do fisco. Aos que gritarem objecção de consciência, haverá sempre a possibilidade de a comprar com a “coima” de dois mil e quinhentos euros.

A semana passada foi o caricato episódio dos piercings e tatuagens, de permeio com a proibição de sete “raças de cães perigosos”. Agora foi esta historieta com as transacções envolvidas em casamentos. O que sobrará para a semana? Que teremos que informar com regularidade as compras feitas nas frutarias e peixarias, as comezainas em restaurantes, as visitas ao mecânico, os livros e discos comprados, e o que mais se possa imaginar? No mesmo registo dos casamentos: e as luas-de-mel passarão a exigir apresentação de factura comprovativa – para que os zelosos funcionários do fisco, tão imersos na sua tacanha vidinha, saibam onde foram regalar a vida os casados de fresco? Ou, já agora, noivos obrigados a apresentar facturas dos gastos (nas variedades que se possam imaginar…) com despedidas de solteiro?

Passaremos a ser dez milhões de funcionários do fisco, não demora nada. O exílio, cada vez mais apetecível.

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