29.8.18

A cidade dos sonhos (short stories #19)


Sharon Van Etten, “New York I Love You But You’re Bringing Me Down” (live at BBC Proms), in https://www.youtube.com/watch?v=YOtNHl8Wvho
          Que distração avulsa, que deleite incaracterístico, que fogueira inverosímil num acanhado lugar. Que romaria sem gente, que destino loquaz na fecunda procura de lugares que transpiram paraíso. Era uma cidade fugazmente presente. Respirava, ao mesmo tempo, a serenidade de uma cidade devolvida a um deserto de gente, e o bulício, portas-meias com a confusão todavia organizada. Ouvira-se dizer que era a cidade dos sonhos. Onde as pessoas, de tantas serem, não se atropelam nas suas mundanas extravagâncias. Pois a todos eram permitidas as suas extravagâncias, sem a animosidade e a inveja que as extravagâncias infundem noutros lugares. Pareciam num estado imersivo, as pessoas. Todas esboçavam um discreto sorriso, as extremidades dos lábios, quando ambas as camadas dos lábios convergem numa aresta, subtilmente retesadas no sentido do sorriso. Ouvira-se dizer que era a cidade dos sonhos. E que a maior proeza era a tradução dos sonhos em coisas tangíveis. A proeza começava mais atrás: era possível, na cidade que levava o cognome dos sonhos, reter a matéria sonhada em carne viva. (Pois são uma maioria os sonhos sonhados de que não se consegue ter leitura.) As conquistas da cidade eram o transvase da constelação de sonhos que tinham tradução tangível. Também se dizia, talvez a preceito, que não havia conflitos na cidade dos sonhos. Não havia roubos, homicídios, ou outra criminalidade avulsa. De tal sorte que os tribunais foram encerrando, um atrás do outro. E por ser a cidade dos sonhos, em que os avanços eram ditados pela transfiguração dos sonhos passados a papel, as instituições de governação também eram dispensáveis. De tal sorte que essas instituições estavam reduzidas ao mínimo possível – à existência de um gabinete que organizava a tradução dos sonhos, segundo uma ordem espontânea de chegada dos concidadãos que queriam dar o seu contributo. Na cidade dos sonhos, não havia lágrimas. A não ser aquelas que eram vertidas sobre sonhos proscritos. 

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