2.8.18

A imprensa que convoca a comiseração


LCD Soundsystem, “Dance Yrself Clean” (Muppets rock out in Brighton), in https://www.youtube.com/watch?v=Zj9Sv1JpmPs
Os nobres sentimentos têm de ser educados a partir da imprensa (e, talvez, seguindo os recados, os discretamente enviados recados, dos que se constituem patronos da “boa sociedade”). A comiseração é um desses nobres sentimentos. Sobretudo a propósito de cataclismos que arrematam um punhado de mortes.
Muito se poderia teorizar acerca da necessidade da comiseração. É uma simbiose interminável que coloca os dependentes da comiseração num esquizofrénico papel: ora são os generosos fautores da comiseração, deixando o seu verbete de solidariedade junto dos desvalidos do momento; ora se imaginam, num tempo indeterminado (que as desventuras não escolhem lugar no calendário), na pose de quem precisa da comiseração dos outros. Não admira que haja tanta gente disposta a alinhar no exército que salpica postas de comiseração quando é necessário. Querem-na – ou terão sua serventia – se for tempo e modo de precisarem dela para remédio (aparente) das angústias excruciantes que os assaltarem. Depois, o povo dirá, qual trunfo guardado na manga dos lugares-comuns, “temos de ser uns para os outros.
Ontem, um jornal continuava o acompanhamento dos incêndios na Grécia. A contabilidade dos mortos aumenta a cada dia. Na melhor imersão de sensacionalismo obsceno, o jornal documentava as mais recentes vítimas, descobertas depois de alguns dias em que estavam inventariadas como desaparecidas. Os detalhes é que são lúgubres. Para começo de conversa (e para que os candidatos à lágrima de comiseração comecem a preparar o lenço a preceito), duas das vítimas eram irmãs gémeas. As outras duas eram seus avós. Para concluir o detalhe mórbido da notícia, o jornal dava conta que os quatro foram encontrados abraçados uns aos outros e assim pereceram sob o jugo do fogo.
Imagine-se o efeito psicológico, devastadoramente psicológico, que a notícia, e a escolha dos detalhes que serviram a sua narração, causou nas pessoas mais achacadas à comiseração. Uma hipótese: “pobres irmãs gémeas, que vieram ao mundo separadas por uns instantes e do mundo foram levadas ao mesmo tempo, na ceifa do fogo destemperado.” A descrição atinge foros de obscenidade ao saber-se que as gémeas e os avós, imersos no pânico, se abraçaram na remota esperança de se protegerem da imparável cavalgada do fogo. Exclamarão os patriotas da comiseração, com um severo amargo de boca tingido pela incorrigível tentação do voyeurismo: “que modo horrível de morrer!” Ato contínuo, dirigem as suas preces para os pobres falecidos em tão horrendas circunstâncias. Não lhes é dado perceber que as preces são extemporâneas, por ausência de destinatários. 
Entretanto, acumularam mais uns pontos no deve e haver da comiseração. Futuramente, poderão reclamar a troca desses pontos por uma maquia de comiseração quando ela for útil. Assim se compreende melhor que “temos de ser uns para os outros”...

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