16.8.18

Pretérito imperfeito (short stories #10)


Brian Ferry & Todd Terje, “Johnny & Mary”, in https://www.youtube.com/watch?v=Din_eWjJWe0
          O rosto macerado pelos ventos vindouros: as rugas são apenas marcas que o tempo futuro há de legar. Não importa o passado. Não importa julgá-lo. Pois se não tem essa serventia, que sentido faz ter dele vergonha? Os arquivos estão cheios de poeira e alguma dela até pode ser tóxica. E depois? Trazemos connosco um gáudio irrebatível – o orgulho de sermos alguém no tempo presente, na glorificação sublime do que nos é dado a experimentar. Não se condensa do pretérito nada que tenha préstimo. Os arranjos do tempo são efémeros campos onde a sementeira se esgota no instante seguinte, no instante imediatamente seguinte. Aprendamos a orientar o olhar para o lugar presente, como se fosse possível esgotar as outras medidas do tempo na medida atual, por sua vez exaurida no exato instante em que é dada a revelar-se. A convergência de vontades ergue as efemeridades ao seu estatuto proeminente. Abraçamos o instante; enquanto o abraçamos, somos tutores da sua moldura, como se a nós viesse o sortilégio de perpetuar o instante pela medida do tempo que for nossa decisão. O pretérito é sempre imperfeito. Essa é das poucas certezas que podemos ter como assente. A espada que se deita no umbral do porvir terá validade quando a vontade, ou apenas os acasos, assim determinarem. Poucos somos além da nossa vontade. Às vezes, somos reféns inteiros do acaso. Seremos maiores se a nós vier a força para cinzelarmos a vontade, arpoando-a a uma indomável condição. Diluindo o sofisma que nela se encerre. Mesmo sabendo que somos arautos da fragilidade que é corolário da imensa grandeza das pessoas. Enquanto viajarmos no mapa do tempo saído das nossas mãos, seremos arquitetos dos desenhos que têm as mãos por património único. Mesmo que o pretérito seja um véu embebido em imperfeições. Ou, talvez, por esse motivo. 

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