30.8.18

Lenço enxuto (short stories #20)


The Clash, “The Magnificent Seven”, in https://www.youtube.com/watch?v=QVtt6Cd1s94
          Julgava motivo de vaidade, o lenço continuamente enxuto. Sinal da ausência de lágrimas. E de contratempos, angústias e maldições que são a cal viva das lágrimas. Afinal – e os pergaminhos marialvas não podiam ficar à margem – “um homem nunca chora”. Tinha de exteriorizar a fortaleza para ser o cais que desse segurança aos outros. Saber-se um esteio para um domínio de pessoas era do seu agrado. Talvez involuntariamente, deixava cair a face: ser esteio era prioridade interna, mais do que simples gesto de altruísmo. Ou melhor: o altruísmo era a medida acessória, o passo necessariamente consecutivo à sua autoidentificação como alicerce. As lágrimas eram estigma dos outros (“estigma” – era a palavra forte que tecia o seu raciocínio). Na melhor das hipóteses, o lenço deixava de estar enxuto porque tinha de segurar as lágrimas de alguém. Ninguém fazia ideia da imensa fragilidade que escondia nas arcadas afundadas em subterrâneos lugares, indisponíveis para visitação pública. Em privado, despojava-se do lenço. Podia verter todas as lágrimas que fossem anotadas no pretérito, sem ter de as selar no lenço desse modo sempre enxuto. Uma confidente – a única pessoa que estava ao corrente desta fragilidade – sugeriu que não podia continuar a oferecer o peito de ferro às inquietações dos outros. A fatura, pagava-a em casa, no válido lugar onde acertava contas com a solidão. Nem assim capitulava. Do estatuto adquirido não se pensasse que podia prescindir. Sedimentara tantas responsabilidades diante dos outros que eles não perdoariam a revelação das íntimas fragilidades. Ninguém queria saber dele se soubesse das lágrimas furtivas diligentemente desviadas do lenço. A confidente insistiu: era hora de viver mais a sua vida e menos as dores que desassossegavam os outros (e, por tabela das responsabilidades assentadas, ele próprio). Não anuiu: não tinha vida própria, a não ser a que coalescia nas vidas outras. Em segredo, o seu lenço estava constantemente inundado. Pelas lágrimas de outros que eram suas também e pelas que vertia em segredo.

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