9.8.18

Bottleneck (short stories #5)


Sufjan Stevens, “Fourth of July”, in https://www.youtube.com/watch?v=vq5NvJvr55Q
          A garrafa estende-se num largo estuário, longânime. Um mar da palha, à lisbonense. Sendo largo o estuário, tem esqueleto de sobra para alojar as palavras prolixas, para memorizar os rostos de numerosas pessoas que já foram transeuntes no passeio por onde desfila a existência. Tem capacidade para fazer corresponder nomes a rostos, usando uma mnemónica infalível. Toda esta memória serve para um criterioso anexar de citações de livros que ficaram nas estantes e com lugar reservado num pedaço da garrafa. Vista à distância, a garrafa parece um mosaico de coisas indistintas, as cores atropelando-se umas às outras, irradiando uma claridade contagiante. Dir-se-ia: se esta garrafa fosse lançada ao mar por um marinheiro com o atrevimento para desenhar uma memória futura, quem a encontrasse teria tempo de sobra para a sua hermenêutica. A garrafa foi sendo ocupada à medida que o calendário se depunha no seu movimento natural. Mas a garrafa não é um santuário ilimitado. O seu largo estuário estreita-se quando se avizinha do gargalo. Confrontada com o garrote, a garrafa reclama um alívio. Não pode continuar a ser um recetáculo de palavras prolixas, de rostos cruzados, de nomes em rima com os rostos, de livros, música e o demais que uma existência compreende. Impõe-se a seletividade exigida pelo estreitar do caudal, sob pena de tudo transbordar da garrafa e tudo ser desaproveitado. Chega o momento em que a garrafa tem de ser vazada. Higienicamente vazada. É como acontece às barragens, que armazenam suas albufeiras que periodicamente têm de ser vazadas. À espera de serem preenchidas com a fértil matéria que o tempo vindouro traz até elas.

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