23.8.18

O tempo furtivo (short stories #15)


Mão Morta, “Aum” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=eLtMFp0sIOk
          Que impressão digital fica do tempo cevado? Um ermo, talvez, uma distante fotografia que nem a melhor memória consegue avivar – como se fosse uma fotografia a preto e branco, e desbotada. A cabeça insiste, contra os tentáculos da fadiga. Pode ser que uma medida fique a levitar e a intemporalidade seja proeza à mão de semear. As algemas que impendem trazem segundos pensamentos. No papel deposto, onde se desenha a linha do tempo, as palavras e as imagens erram com uma voracidade aterradora. As páginas sucedem-se umas às outras, imparáveis. Por mais que a cabeça instrua a mão para travar o léxico das páginas, a mão cristaliza, contrafeita pela aceleração das páginas onde o tempo é macerado. Uma pergunta irrecusável sobe à boca: com tanta vertigem no desfile das páginas, e em sendo elas açambarcadas por um tempo despótico, não se incinera o tempo no dobrão que devia ser seu capataz? Eu julgo que há um contratempo maior do que todos os outros: de tanto se elaborar sobre o tempo, ele é o ditador que sobre a vontade se abate, locupletando-a. Não há menção honrosa ao pretérito. Também não se espere que o porvir peça licença para anunciar menções honrosas: ele joga-se no cinzel da indefinição. É o tempo que corre atrás de nós (por mais estranho que pareça o enunciado). Corre atrás de nós, para que sejamos seus súbditos e lhe prestemos vassalagem. Mesmo que a sua furiosa demanda se jogue contra nós, quando damos conta que o tempo veio com a leveza de um estorninho e tende a dissolver-se no efémero que é seu nome próprio. Oxalá houvesse um modo de tornar as coisas fáceis. Podíamos habitar numa medida alternativa do tempo, homologando um tempo diferente, variável. Para não estarmos penhorados pelo tempo, antes dele sendo seus tutores. 

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