27.9.18

Chapéu de palha (short stories #37)


The Smiths, “The Headmaster Ritual”, in https://www.youtube.com/watch?v=rDdbGQp7dwg
          As abas um pouco gastas do chapéu e o velho insistentemente seu proprietário: quem o conhece sabe que o homem traz sempre o chapéu de palha. Ninguém sabe como é o cabelo do velho – se é hirsuto, ou se o homem é calvo, em que medida e grau o cabelo é grisalho. No chapéu, alguns fiapos estão corroídos. Há partes do chapéu que já não têm fiadas de palha, pois o velho fez a sua meticulosa bricolage para aparar as fiadas que se soltavam do emaranhado e que punham em causa a harmonia (e, a seu ver, a estética) do chapéu. Na aba, como se fosse a lapela onde repousam as memórias fortificadas, depôs alguns pequenos ícones. Devem ter muito significado. A boneca de uma bailarina, representando aquelas meninas de porcelana que, de corpo tão franzino e sublimemente leve, estão fadadas para a dança. Talvez tenha sido um amor passado que o velho quis guardar num dos degraus do chapéu. Noutro lugar, diametralmente oposto, um minarete. Supõe-se que o velho se desenamorou da religião oficial (apesar da laicidade selada nas regras do país) e estoicamente abraçou o islamismo. A encimar o chapéu, no rebordo da aba que lhe é inferior, uma pequena cornucópia de flores, um arranjo minúsculo, cirurgicamente orquestrado, e que muda todas as semanas à medida que as flores se entregam à decadência e o velho sente um pulsar heurístico. Quase impercetível, outro lugar da aba acolhe um verso (com aspas, a indicar a citação de que foi esquecido o autor): “oxalá medre no penhor do olhar/o avesso da agonia.” O velho detesta rotinas. Nunca toma o pequeno-almoço à mesma hora e vai mudando de confeitaria para ver pessoas diferentes. Não fala com elas. Cultiva uma distância metódica e intimida quem dele dá conta e possa querer arrematar conversa de ocasião. Porque o velho também detesta conversas de circunstância, deitadas do aluvião de um inconsistente nada – da conversa apenas porque apetece, da não sumarenta conversa. Um dia, após o pequeno-almoço, o velho deixou uma jura vertida numa folha extraída a um bloco de notas: “Só deixarei o chapéu de palha à data da minha morte.” Quem o fosse velar poderia ver, pela primeira vez, o velho de corpo inteiro. No dia seguinte, nenhuma das confeitarias habitualmente visitadas soube do seu paradeiro. O chapéu de palha foi encontrado abandonado a um canto de uma paragem de autocarro.

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