Goldfrapp, “Utopia” (live at Somerset House), in https://www.youtube.com/watch?v=qVsETSgiMnU
(Mote: “The Monarchy of Fear: A Philosopher Looks at Out Political Crisis”,
Martha C. Nussbaum, Oxford University Press, 2018)
As sombras acastelam-se, deixando um aroma nauseabundo tomar conta do horizonte. Parece que não aprendemos com os erros que a História nos ensina. Há quem emudeça a memória e caia na vertigem de fazer o passado enodoado ser tutor dos tempos vindouros. Os sinais multiplicam-se. O populismo estéril; a nova direita que retoma a pulsão do nacionalismo, da autarcia, da voragem do ensimesmamento, em que os outros são o viveiro das desconfianças e do repúdio – em que os outros chegam a não ser tratados como pessoas; a entorse da democracia (rebatizada “democracia iliberal”, numa perfeita contradição de termos), com constantes atropelos à tolerância e às liberdades que se julgavam património imaterial da democracia; com a velocidade de uma bola de neve que desce a montanha, recrudescem os radicalismos que conferem viabilidade (e legitimidade eleitoral) a movimentos que negam o concurso de ideias que lhes permitiu fazer prova de vida; e tudo – repita-se – em pura contrafação da História, parecendo que a memória dos Homens é curta, ou que se reinterpretam acontecimentos na usura de quem lhes nega visibilidade nos arquivos da memória.
Do lado oposto, radicalismos de sinal contrário. Evocam a desmedida dos tempos, os crimes julgados, a memória da História. Insistem que não deve ser dada voz a quem não respeita os outros, a quem passeia no limiar da intolerância e não se esconde do impudor dos métodos violentos para calar quem deles discorda. Do lado oposto, crescem as vozes que querem calar quem os quer calar. Protestam: não se pode iludir a História e dar palco a quem dá caução a tantas atrocidades; devemos desconfiar de quem se esconde das responsabilidades mundiais e prossegue na senda da provocação gratuita, atuando como pária quando devia ser ancoradouro de estabilidade. Do lado oposto, emerge um discurso que é tão intolerante como a intolerância que quer combater.
Não se entende que uma intolerância seja melhor do que uma intolerância com diferentes pergaminhos. Nem é de aceitar que no salutar concurso de ideias, que deve ser o esteio das discussões na praça pública, alguém ouse silenciar o oponente porque o oponente é geneticamente avesso à tolerância e ao respeito pelo outro. Pode-se argumentar, outra vez, com as lições da História: se o oponente tiver oportunidade, serve-se do seu autoritarismo sanguíneo e silencia-nos. A bem ou a mal, que o oponente não olha a meios para alcançar os objetivos. Há uma forma diferente de encarar o desafio que vem do futuro. Em vez da crispação que alimenta crispação e que pode desaguar em violência ou num resultado fatalmente pior, devemos ter a disposição para a discussão de argumentos. É o que Martha C. Nussbaum chama amor. Eu acrescentaria: amor contingente – contingente, por ser uma adaptação aos desafios colocados e por ser um amor diferente daquele a que estamos habituados (amor filial, amor familiar, amor com quem partilhamos a vida). Não podemos engrossar o exército dos que se propõem colorir o horizonte com sombras, numa espiral interminável que não é bom presságio.
Devemos alimentar uma teoria de expetativas aumentadas. Só se pode confinar os intolerantes a um reduto insignificante se com eles forem discutidos os assuntos que interessam. Se nos recusarmos a sentar à mesma mesa, virando o rosto à discussão, somos culpados de eles se fazerem passar por vítimas. Há muita gente que se deixa seduzir por quem se oferece ao papel de vítima. Isolá-los, deixá-los sozinhos num monólogo, deixá-los arcar o papel de vítimas, é meio caminho andado para arregimentarem mais lealdades. É o método errado. Quando dermos conta, somos minoritários e ficamos expostos às atrocidades que adivinhamos que podem cometer.
É este o sentido do amor preconizado por Nussbaum. Amor, no sentido de amarmos os valores que são o húmus da civilização e de por eles estarmos dispostos a discutir com quem deles se afasta. Se deixarmos os intolerantes a falarem sozinhos, não os confrontamos com a discussão. Se elevarmos a fasquia e formos concorrentes com eles no domínio da intolerância (porque há quem continue a supor que a sua intolerância é derrotada com a nossa intolerância em relação a eles), estamos a dar-lhes os trunfos que eles anseiam. Os descrentes podem duvidar do método, podem até acusar o toque de um certo lirismo sem chão para prosperar – assim como assim, dirão, este amor dirigido aos oponentes pode ser o pasto para a nossa consumição. Pesados os prós e os contras, o amor contingente parece melhor método, por mais lírico e extravagante que pareça.
Sem comentários:
Enviar um comentário