7.9.18

A celebração da loucura (short stories #26)


Moderat, “The Fool” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=SuyMyAkggiI
          Usava um girassol a tiracolo. Ao pequeno-almoço, enquanto lia a biografia (não autorizada) de Sidónio Pais, bebia leite de cabra misturado com sumo de romã e açúcar mascavado. Comia pelo menos quatro chocolates por dia. Sorria aos grosseiros que passeavam a boçalidade como arma de defesa. Ignorava as criancinhas (não guardava grandes memórias da infância – e gostava de saber porquê). Tanto ouvia heavy metal, como coros búlgaros, ou Bach, ou a última revelação da música etíope. Já não ia ao médico há um lustro. Não acreditava em confidências. Às vezes acreditava em religiões (nos dias em que comia peixe ao almoço). Gostava de ter um gato, mas as alergias não consentiam. Em dias livres, ora se refugiava no quarto, de janelas fechadas ao mundo, sem livros por perto; ora desempoeirava os destemperos em caminhadas longas e sem rumo definido, obedecendo a uma aritmética ao acaso (virar na segunda à esquerda, cortar na quinta à direita, descansar no primeiro jardim público). Aprendeu polaco sem ter necessidade. Só havia uma coisa que a irritava: o manual das convenções e o imperativo de as pessoas, para normais serem consideradas, seguirem o preceituado no manual. Não quis ter filhos, só para contrariar os lamentos dos governantes sobre a crise demográfica. (Nunca teve a certeza do que era o amor e nunca foi tomada de assalto pela convocatória do amor filial – e isso jogava a favor da recusa em ser mãe.) Gostava de se sentar à mesa de um café e meter conversa com o desconhecido da mesa do lado, para dissolver as sementes da timidez. Gostava de escutar histórias de viagens – pois só tivera a oportunidade de viajar em palcos imaginados. Outorgava ao devir o altar do seu passado, pacientemente à espera que ambos se entendessem para se desembaraçar do resto. Ao fim da tarde, quando lhe apetecia, simulava-se turista e pedia informações aos nativos. Dormia sem sobressaltos e não se lembrava dos sonhos (e dos pesadelos). Sabia, ao acordar, que o seu rosto não era uma máscara. O que caucionava a seguinte noite de bom sono.

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