3.9.18

Guarda-redes (short stories #22)


Depeche Mode, Useless (Kruder & Dorfmeister Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=-QJ4wGJp6uw
Um clássico: o gordo ia sempre para guarda-redes. O gordo só tinha a menção de ser guarda-redes porque era desajeitado, não servia para marcar golos. E o gordo, que não queria ficar de fora, aceitava. Não ajuizávamos como deve ser. Se fossemos nós – que não éramos gordos e tínhamos a mania que seríamos estrelas do jogo quando fossemos espigadotes –, ir à baliza era sinónimo de resignação. Para o gordo, era motivo de orgulho. O gordo, de tanto espaço ocupar no espaço da baliza, compensava a menor destreza para a movimentação com a capacidade para retirar espaço à pontaria dos adversários. Só o descobrimos mais tarde, quando o raciocínio se fortificava nas teias da elaboração. (Ficámos devedores da filosofia.) A vantagem de o gordo ir à baliza era explicada pela lei das probabilidades e pela taxa de ocupação do espaço. Começamos a perceber porque eram tantos os jogos saldados com vitórias. O mérito era do gordo. Confirmava-se que não se ficava a dever aos predestinados dotes dos outros de nós que não queríamos – porque julgávamos função menor – jogar à baliza. (Confirmando-se o preceituado de que não seríamos figuras porque nenhum saiu da cepa torta.) Aprendemos a consagrar os méritos onde eles parecem ausentes. As vitórias não se açambarcam só quando nos atiramos ao ataque. É preciso não dar a guarda ao adversário. As linhas de defesa têm de estar diligentemente montadas. De repente, e em retrospetiva, percebíamos alguns dos lampejos de ingenuidade que atravessaram aqueles anos de juventude.  Só pensávamos em garantir os feitos através do ataque. Nunca demos valor à preservação das linhas sobre as quais tudo o mais se firmava.  Anos mais tarde (julgávamos: já não eram os verdes anos), demos conta de estarem invertidas as variáveis. Tudo se jogava à defesa e raros eram os passos adestrados na alucinante ambição que fora a medida de outrora. Talvez não fosse por acaso que muitos de nós ficamos gordos.

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