17.9.18

Do circo como arte quotidiana e estranhamente não reconhecida (short stories #31)


Trentemøller, “Deceive”, in https://www.youtube.com/watch?v=rcBVG-n6Hts
(Subsídios para uma nova teoria da luta de classes, versão século XXI)
Petição de princípio: somos todos palhaços e raramente damos conta. Também se podia dizer que somos a carne para canhão no patamar dos poderosos e que não temos armas para contrapor a infâmia porque não damos conta do papel em que somos colocados. Meros peões na arenga dos fortes, mexem-nos a seu bel-prazer e com a nossa aquiescência – melhor dizendo: contando com a nossa passividade. Ou ainda, e com recurso ao vernáculo, ficamos na posição passiva de quem é sujeito a fornicação por outrem, sem haver um módico de intimidade que sugira o ato, e com a agravante de, por não nos ser dado a saber que estamos rendidos àquele papel, não tirarmos prazer do ato lúbrico. De todas as hipóteses, a de palhaço parece a mais fidedigna. Descontando a narrativa do fado, e um certo sentir nacional que puxa ao melancólico, anuímos abulicamente e com um doce sorriso pespegado no rosto, vítimas das experiências que os poderosos ensaiam em nome do bem-estar social. No apuramento dos resultados, o progresso (de que se diz ser a métrica que avalia o andamento dos tempos) é uma cilada. Ao contrário do propagandeado, o progresso só é tangível para um punhado de afortunados. Os mais novos parecem condenados a não ter as mesmas oportunidades das gerações antecedentes, contrariando a lógica do progresso (que se revê numa farsa). E rimos e fazemos de conta que estamos felizes e compensamos com o papel de consumidores, no congresso onde se liquidam as contas do grupo com o bem-estar. Para coroar o cenário risível, damos caução aos próceres que nos afocinham numa espiral de desesperança que, todavia, não é detetada. Daí sermos palhaços. Levamos às costas os poderosos, autênticos parasitas com a sua covardia sem disfarce. O que só é possível porque continuamos em letargia, presos ao jugo da ignorância – ou, quando não existe ignorância, sitiados pela catilinária da indiferença. Não damos conta, mas andamos nas ruas com uma farta bola vermelha no lugar do nariz, uns andrajos fartamente coloridos e uma cabeleira que simula semi-calvície. A semi-calvície que metaforicamente ostenta o zelo que se dissolveu nos vasos que ficaram ausentes de ornamentos capilares. É histórico: o mundo sempre precisou de um elemento circense.

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