The Clash, “Clampdown”, in https://www.youtube.com/watch?v=psB0cidB5bg
- Não era nada que o anoitecer não amaciasse. Talvez uma quimera por descobrir, uma árvore frondosa que escondia o seu esplendor no espelho baço da noite.
- Sem as consumições, ou se as descontasses, dir-se-ia ser um retrato igual ao do mar quando é um espelho perfeitamente horizontal, sem o menor descuido de nível. Uma aproximação à perfeição.
- Que se nos pode acometer, neste refúgio onde as almas transparecem?
- Não tenho ideia de nada. Não será mau conselho estar de atalaia. Os contratempos não enviam pré-aviso.
- Eu julgo que podemos estar precatados aqui, neste castelo sobranceiro que alcança o resto. Julgo que somos à prova de bala quando nos querem furtar o juízo com espadas desferidas traiçoeiramente no dorso. Afastamos as mãos asfixiantes com um sopro de indiferença.
- E se a vontade não for garantia sublime?
- A vontade é a mais alta norma por que se rege o comportamento.
- Que dirias em teu favor?
- Precisava de o fazer?
- Imagina que sim. Um desafio. Um exercício intelectual.
- Que diria?!... Diria que sou desalmadamente eu. O que talvez não seja cartão de visita recomendável. Mas não é de supor que o que se diga em nosso favor seja com o propósito de seduzir os outros. É assim que vejo o desafio: ofereço-me em minha defesa como perímetro onde se delimita a consciência. O resto, não importa. Não quero saber de opróbrios, de maus julgamentos, de rumores que são apenas rumores – e, portanto, infundamentados –, de esperas sem tempo para o serem. Não teria muito para dizer em meu favor, em todo o caso.
- De mim, caso fosse confrontado, diria ser entrega absoluta às causas, honestidade desarmante, até franqueza excruciante (que se joga contra mim). Voluntarismo que me é prejudicial. Consequencialismo omitido. Algum hedonismo, irresoluto. Em vez da implacável espada sobre oponentes que surjam em liça, o desinteresse, a irrelevância a que os voto. E amor sem freios, acima de tudo.
- E tens inimigos?
- Só atribuis importância a esse excerto da narrativa em minha defesa? Porquê?
- Talvez por não haver inimigos a povoar a minha existência. Não é muito diferente da tua posição, no fim de contas.
- Voltamos à página precedente. Melhor: viramos a página. Avançamos uma resma de páginas, ao acaso. Veremos o que nos sai em sorte: seremos penhores das palavras todas que dizemos? Não ficarão outras tantas, ou se não tantas, pelo menos mais contundentes, por dizer?
- É possível. Não há ninguém que consiga dizer tudo o que intui. Há palavras que ficam resguardadas. Outras que, estando-o durante longa temporada, são resgatadas porque a vontade assim o determinou, ou porque a esse favor se jogaram as circunstâncias. Não há nada de organizado, não há nenhum jogo predeterminado, que seja o critério. Acontece. Ao acaso.
- Não há palavras depositadas num cofre? Palavras de que temos medo? Medo, porque se podem jogar contra nós? Não as gerimos, não somos delas autênticos estrategas, ajuizando o que delas fazer?
- Nada é assim tão cirúrgico. E, depois, como sabes se as palavras que entesouraste são o aval que por ti se empenha?
- Ah, a verdade sobrepõe-se no fim do jogo!
- A verdade! E o que é a verdade? Consideras a hipótese de a objetivar? Como sabes? É um instinto? Uma qualquer decisão que se congemina na parcialidade dos corredores por onde se entretece o pensamento? Como sabes, objetivamente, acerca da objetividade da verdade? Já para não te interrogar sobre o lugar onde fixas a meta: como sabes que o jogo chegou ao fim e só depois avalizas as palavras que depuram a verdade?
- Nessa altura, admito que é a subjetividade que prevalece. Considero que a vontade é o melhor critério: será verdade aquilo que internamente considerar digno de o ser.
- Jogas a tua verdade, as palavras que a cristalizam, contra a verdade dos outros? É um xadrez em se que terçam verdades, até vingar a que disser “xeque-mate”?
- Tu sabes que a pertença ao mundo, a existência, ela mesma, é um espelho da concorrência. Ditado pelas avulsas contingências.
- Por isso prefiro a noite. O sortilégio que se esconde nas densas camadas de escuridão onde se acotovelam os vultos que não têm rosto. Nessa dimensão imaterial, não medram vontades alinhavadas com a sede de as ostentar. Pois é disso que se trata: a verdade, essa sofreguidão, é um exibicionismo onde campeiam as almas ansiosas por afirmação de superioridade. Não é por superioridade; é por afirmação de superioridade. Uma maldição, isso de querer, e ter de provar, ser melhor do que outros.
- Não te interessas pela verdade?
- Só me interesso pelo que conheço. E tenho apenas um vago conhecimento de um punhado de coisas. Nenhuma delas é a verdade.
- Não admites que este é um mundo selvaticamente competitivo, que a concorrência nos leva a querer provar que somos melhores do que alguém que é a bitola?
- Não. Rejeito-o totalmente. Só tenho de dar provas a mim mesmo. Essas provas não são esbofeteadas no rosto de ninguém.
- E se meteres mais uma linha no diálogo?
- Prefiro o silêncio. Não há verdade que o desminta.
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