1.5.19

Embrionário (short stories #113)


The Jesus and Mary Chain, “Happy When It Rains”, in https://www.youtube.com/watch?v=G5x1F9ohRa4
         Tudo parecia embrionário. Não passava de embrionário. Não chegava tempo para repor o que fosse. Tão depressa era embrionário como parecia fora de prazo. Uma curta vida útil. E prometia: quando se lançasse a uma empreitada, vez haveria de encontrar um meio para não passar de embrionária. E fracassava, sistematicamente. A promessa depressa esquecida: acabava por tudo perecer sob a espada severa do estado embrionário. Olhava para trás. Tudo o que via era um deserto. O selo da sua existência. Literalmente nada. Porque se tudo não passava do estado embrionário, nada conseguia medrar, nada ficava para memória futura. Estranhamente, não era causa para se considerar órfão de identidade. Aprendeu a conviver com a ideia de que a sua identidade era o acabamento perfeito da efemeridade. Quando procurou averiguar o boletim clínico do parto, ia com a desconfiança de que nascera prematuro. Os prematuros são sempre embrionários – tardiamente embrionários. Não se confirmou. Tinham passado as semanas registadas nos compêndios para um recém-nascido não ser prematuro. Continuou a demanda. Tinha de saber se havia algum episódio que explicasse o malogro do embrionário estado que o devolvia a um pré-estado, algo semelhante a um coma. Foi aos registos das escolas, amesendou com amigos de infância e de adolescência, até com amigos mais recentes, feitos no trabalho. Continuou sem respostas. Não haveria de ser grande o mal, a julgar pelos ensinamentos da filosofia (“o que importa é saber formular perguntas, não encontrar respostas”). Não era agora, à beira da quarta década de vida, que ia a tempo de uma crise existencial. Isso era para adolescentes desorientados e para gente que não soube interiorizar a madurez (ou para outros que tivessem sido atingidos pelo infortúnio). Olhava para trás e só via a poeira hasteada na imensidão do deserto. E não era porque alguém passava; era apenas o vento que despenteava as areias do deserto. No fim de contas, era assim que se sentia: um cavalo indomável que não conseguia sair do estábulo. E até o deserto que pressentia, dele fazendo ilha sem paradeiro, não era troteado pelo cavalo. Foi então que descobriu, num vestígio de lucidez, que não era ilha no meio do deserto. Era oásis.

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