7.5.19

Mural


The Cure, “Pictures of You”, in https://www.youtube.com/watch?v=UmFFTkjs-O0
Uma prenda de aniversário: um mural, com trinta metros de comprimento e vinte metros de largura, que aproveitava a parede de uma fábrica abandonada. Não chegou a saber quem remeteu o presente. Vinha com uma nota misteriosamente anónima, com uma frase em letra de forma, para não ser revelada a identidade do donatário (ou do testa-de-ferro dos donatários, caso fosse o caso): 
“Agora tens um mural inteiro para dizer, ou pintar, o que te vai na alma.”
Não sabia o que pensar. Nunca passou pela ideia receber semelhante prenda. Fora tamanha a surpresa que ainda não discernira se ia tirar partido da prenda. Podia ser que aproveitasse o mural para ir escrevendo uns pensamentos esparsos, daqueles pensamentos que se soerguem do nada e, quase sempre, pouco mais que nada querem dizer. Podia ser que ensaiasse uns desenhos, ele que pouco mais tinha do que jeito para gatafunhar. Não sabia.
Deixou o mural intacto por um mês inteiro. Todavia, não houve um só dia que não tivesse ficado diante do mural, a apreciá-lo nas suas formas e na convexidade da decadência que era própria do lugar – um complexo de fábricas abandonadas, os edifícios perdendo a sua utilidade à medida que as ruínas se transformavam em cimento putrefato, num amontoado onde se misturava, indiferenciadamente, vestígios das paredes e dos telhados com lixo que se amontoa sempre nos lugares abandonados. Ficava de olhos fechados, tateando as porosidades da parede, imaginando-a decantada antes de começar a receber as suas intervenções. Durante um mês inteiro, não quis inaugurar o mural. Não podia defraudar os donatários com a primeira leviandade que viesse à cabeça.
Um certo dia, tempo depois de ter passado um mês sobre o aniversário, contratou um amigo que trabalhava na construção civil. Pediu para raspar as porosidades que afeavam a parede e para a pintar de preto. Esse seria o pano de fundo para o mural. Sabia que não era um pano de fundo definitivo. Gostava de encarar as coisas à volta da vida como não perenes. Um dia destes, voltaria a telefonar ao amigo da construção civil e pedir-lhe-ia para dar outra demão na parede, de outra cor qualquer, a decidir em cima do joelho. 
No dia da intervenção inicial no mural, decidira inscrever, em letra aformoseada (caso conseguisse, pois tinha algumas dúvidas sobre a estética da sua caligrafia), um breve poema. Só não sabia se era um poema de poeta consagrado, um poema fétiche, ou um poema da sua modesta lavra. Demorou mais cinco dias, a contar da primeira demão a negro sobre o mural, para tomar uma decisão. O mural teria de ser inaugurado com as suas próprias palavras, sem que isso fosse uma manifestação de exibicionismo, ou representasse falta de consideração pelos poetas que considerava. As estrofes, mais dedicadas e, elas sim, sem dúvida, penhoras de poesia, viriam a seguir. E dedicou-se a uma justificação para consumo interno – como se estivesse a pedir desculpa aos poetas cardinais por não serem suas as palavras inauguratórias do mural: aquele era o seu mural; as palavras peregrinas tinham de ser suas; elas seriam o pano de fundo, dentro do pano de fundo pintado a negro, para as posteriores palavras dos outros que fossem a fotografia de um estado de espírito momentâneo, ou a homenagem que o dia exigisse a um poeta.
Faltava decidir se as palavras suas seriam resgatadas ao espólio existente ou se o mural exigia palavras neófitas. Entusiasmado, decidiu-se pela segunda possibilidade. A um canto – o canto superior direito do mural – afixou estas palavras: 
“Não dou à noite/se não o coração aberto/o febril êxtase da transgressão/a redenção sem culpa.//Não me dou à noite/notário de mim mesmo/nas margens da loucura que apetece/e num botão de rosa/sou a constelação aberta à luz solar.”

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