24.5.19

Cartas renhidas


Cage the Elephant, “House of Glass”, in https://www.youtube.com/watch?v=B1ZYRfK2v3E
#1 – Estes são os cromossomas da perenidade. Não sabemos do seu paradeiro. Só sabemos que existem.
#2 – E de que nos serve este expediente? Damo-nos por confortáveis só por saber que existe algo que seja eterno?
#1 – Para que servem as tábuas de salvação se não para isso mesmo? 
#3 – Não quero saber disso. No ocaso do tempo, perecemos. Depois disso não fica nada.
#2 – Ficam as memórias de nós. Alguém há de ser delas tutor.
#3 – Não nos aproveita nada sabê-lo. Quando for virada a página desse ocaso, não sobra nada. Em nós, não vegetam essas memórias. Delas não aproveitamos nada.
#1 – Não concordo. Se assim for, os horizontes perdem espessura. É como se a existência fosse efémera e não fôssemos industriados para lidar com a efemeridade. 
#3 – O que está mal é, em vida, as pessoas fazerem a contabilidade do pós-vida. A morte é isso mesmo, um fim.
#2- Vocês têm medo da morte?
#1 – Eu não tenho. Consegui encontrar a paz comigo mesmo. Resolvi as pendências atrasadas. Hoje não me sobressalto. Não me incomodam minudências que outrora tiravam o sono. O conforto que sei em mim ao dedicar à indiferença o que me é indiferente deixa espaço para validar o que distingo como importante. Tenho a alma preparada para viver como sou. É o melhor tirocínio para a morte. Olhando-a sem perplexidade.
#3 – Eu admito o medo da morte. Tenho pouco tempo para viver, mesmo que consiga chegar a ancião. Todo o tempo de vida é sempre escasso. A morte não devia existir. Eu sei: é uma distopia, mas é assim que resolvo mal o sangue em ebulição que zela as minhas veias.
#2 – Eu não sei o que dizer sobre o assunto. Vou olhando com desconfiança para o amanhã de que o hoje é véspera. Abjuro grande parte das memórias. Não quero ficar por elas sitiado. Só que, ao terminar mais um dia, muitas vezes sinto que não o honrei. Sinto que foi um dia desperdiçado, que o podia nobilitar como ele merece – como eu poderia ser se não fosse refém das minhas fragilidades. Julgo que ainda não tive tempo para amadurecer a ideia da morte. 
#1- Este jogo de que somos meros peões não merece insubmissões. Elas são espúrias. 
#2 – Admito que sim. Mas não estou convencido do teu desprendimento, de como acolhes em teu regaço a futura morte.
#3 – O que mais me custa é a capitulação de quem assim se comporta. Não há na tua atitude (virando-se, de dedo em riste, para o #1) a desistência da vida?
#1 – Pelo contrário: é a serenidade perante a hipótese certa da morte que traz mais ânimo pela vida.
#3 – Parece uma contradição insanável...
#2 - ...A menos que estejas convencido que o desassombro da morte limpa do caminho as angústias, ficando o terreno adestrado para os misteres da vida e só para esses misteres.
#1 – É um pouco isso. 
#2 – Mas pode ter acontecido que esse autoconvencimento seja um ardil, uma cortina de sombras que ilude a lucidez. Como se tu próprio te convencesses que as coisas têmde ser assim. Não significa que elas sejamassim. 
#3 – Acompanho o teu raciocínio. Só os ingénuos é que podem desalmadamente empenhar-se no depósito futuro da morte e dizer que isso lhes empresta lastro para terem uma vida sublime.
#1 – Insinuam que estou a mentir?
#3 – Não foi o que eu disse. Podes estar convencido da bondade da morte apenas porque essa ideia te apazigua. O teu desejo sobrepôs-se ao genuíno pulsar que sentirias por dentro, não fosse o caso de a armadura com que te investiste se ter sobreposto aos medos interiores, aparentemente obliterando-os.
#1 – E mesmo que assim seja, o que importa: o que eu sinta, mesmo que insinuem que é um fingimento? Ou sondar as camadas fundas sob o fingimento e deixar-me tomar pelos pesadelos perenes?
#2 – Só tu podes responder. Quando jogamos com a honestidade interior, somos ao mesmo tempo juiz, algoz e intérprete. É um trilema, muitas vezes.
#3 – Dispenso essa esquizofrenia. Prefiro a simplicidade das coisas como elas são legadas.
#2 – Estando nesta posição intermédia entre vocês, admito que estou mais próximo de #3.
#1 – Compreendo as reservas. A minha posição não é fácil de explicar. Atenta contra os preceitos estabelecidos. Até gente religiosa (o que não é o nosso caso) admite em privado o medo da morte. Notem que não há intenção de vos converter. Somos amigos de há longa data para sabermos que o respeito mútuo é parte do nosso cimento.
#3 – Eu ia dizer: “não quero ter pessoas no meu funeral.” Mas dizê-lo seria validar aquilo que hoje nego veementemente: não quero pensar na morte porque tenho medo dela. 
#2 – As contradições não têm mal. Não somos à prova de bala no território da coerência.

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