14.5.19

Satélite


Rhye, “Needed”, in https://www.youtube.com/watch?v=n8woH4GxUMk
Deliberadamente: contava as luas inteiras e não sabia da aritmética restante. Podiam, algures, os duendes disfarçados fingir a sua própria condição. Seriam satélites de alguém, mas não sabiam de quem. E assim permaneciam, no limbo, sem direito a lágrimas, enquanto a noite se demorava no alpendre da euforia.
Da muita gente que atravessava a rua, ninguém sabia quantos eram duendes disfarçados. As almas silenciosas escondiam-se em vultos arredondados, a ausência de arestas propositadamente impedindo a revelação do que não convinha ser revelado. Afinal de contas, há um certo mistério quando se invoca o lado oculto da lua. De satélites deste jaez não se sabe ao certo se são recomendáveis, ou apenas uma distração que obvia o essencial.
Era deliberado, convém recordar: os olhares avulsos, uma palavra retida aqui, outra ali, como se o jogo consistisse no condensar das muitas palavras soltas apanhadas de bocas diferentes. Só para saber se o discurso da (amostra de) humanidade era inteligível. Coerente. 
Devia ser lembrado que não se podiam esperar grandes cometimentos do desafio da coerência. A coabitação de gente tão heterogénea era de saudar, mas, ao mesmo tempo, um imponderável que atrasava o exercício. Roda-se em volta de um centro, mas não se sabe do seu paradeiro; como se podem inventariar os satélites que adejam nas imediações? Como se pode saber se não somos nós os satélites, na possivelmente dolorosa ideia da nossa desimportância?
Não é fácil o constructo da identidade. O diligente apessoar não é garantia. Devíamos saber que a pele guarda um verniz que não é selo da identidade. E depois sobra um lugar-comum, pungentemente acertado como os lugares-comuns (dizem) costumam ser: é nas camadas mais fundas que se escavam sob a superfície que se encontram os rudimentos de tudo. As luas em que gravitamos são um disfarce.
As mãos procuram um salvo-conduto nas páginas avivadas. Nas palavras vigilantes. Procuram uma cor nas palavras. Querem saber se o lugar que lhes pertence é centrípeto ou é o lugar de um satélite. Não é exercício especulativo. A luz baça não é impedimento. O olhar é incisivo, não se intimida com as cortinas de fumo que podiam ser embaraço. Seja satélite ou não, o ser é o mais importante de tudo. Não importa se é ator principal ou figurante. Congemine-se a taxonomia dos papeis em sua aleatória fundamentação. 
Às vezes, os figurantes são atores principais. Sem o saberem.  

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