22.5.19

Não se dá azeite a beber aos bárbaros (short stories #117)

Charlotte Gainsbourg, “Deadly Valentine”, in https://www.youtube.com/watch?v=LkyIVKbCfG8
          Era estranha, a noite, que deveras nunca mais anoitecia. E, todavia, as candeias estavam iluminadas, burladas pelo equívoco da luz. Via-se pelos pássaros, em sua desorientação aflitiva – o seu relógio interno em descompasso com o logro da noite que não conseguia ser noite. Alguns esbarravam fragorosamente contra as árvores, como se a luminosidade, todavia desmaiada, os cegasse. Havia mais gente na rua. Suportavam o mesmo efeito dos pássaros, ou era gente desabituada de olhar para um relógio. A compasso da insólita noite, estranhamente suavam em bica. Perguntavam-se o que motivava esta raridade. Não havia notícias de um eclipse na proximidade destes dias. As pessoas que andavam na rua estavam sobressaltadas e, ao mesmo tempo, extasiadas. Não era todos os dias que era dia de noite. E não sabiam se o fenómeno tinha repetição no dia seguinte. Arrastaram-se compulsivamente pela noite-feita-dia fora. Conversavam umas com as outras, não se conhecendo de lugar algum. Só ficavam lívidas com a razia na passarada. Depois de acertarem em cheio nas árvores, os pássaros ficavam imóveis no chão. Algumas pessoas chegavam perto dos pássaros. Queriam saber se estavam inanimados ou mesmo mortos. Não se confirmavam os piores temores. (Não que houvesse muitas pessoas genuinamente preocupadas com um possível genocídio de aves ditado pelo fenómeno em curso.) Concluíram que os pássaros, fora do ambiente natural e com o relógio interno desacertado, preferiam hibernar. E hibernaram até a “ordem natural das coisas” ser reposta. Os viandantes que resistiam à hora tardia, sem o menor assomo de sono, estavam à espera da manhã que viesse restituir a “ordem natural das coisas” – a luminosidade incensada pelo sol que haveria de despontar à hora fixada nos almanaques. E se o sol não se levantasse? – começou-se a ouvir, em surdina, em perplexidade antecipada, talvez extemporânea. Não se confirmou o apocalipse. À hora marcada, os primeiros raios de sol decretaram a aurora. E os resistentes começaram a bolçar a mistura de bebidas alcoólicas que tinham ingerido durante a noite que nunca fora tão diurna. Até descobrirem, pela análise das amostras enviadas para laboratório, que não é bom conselheiro beber azeite da almotolia. 

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