30.5.19

Percorria o estrado altivo e recolhia os rudimentos da incerteza (safra eloquente)

Jambinai, “Connection” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=56dv3XHUISY
Era um sanatório, contudo não salvífico. As pessoas dirigiam-se ao sanatório quando estavam assoberbadas pelas hesitações e as palavras vogavam numa nuvem fina, à margem da consistência. Porém, eram poucas as pessoas que frequentavam o sanatório. O edifício ressentia-se: notavam-se as ferragens que deviam estar escondidas sob a cama de cimento, a pintura estava decadente e, diziam os funcionários, chovia em algumas salas. A administração do sanatório estava quase a capitular: por mais que pedisse um reforço do subsídio (assim como assim, deve ser função do Estado pagar o serviço que alivia os súbditos das consumições da incerteza), o silêncio era a resposta perene.
Um patíbulo insistente era ocultado dos olhares que queriam avidamente ser penhores das certezas. Eram umas certezas contra outras certezas, num diálogo impossível, um diálogo de surdos. As pessoas só falavam com as que tinham as mesmas ideias. Saldavam-se, as conversas, por uma fútil sensação de triunfalismo. Todas concorriam no mesmo sentido, sem uma que povoasse o contraditório. Era como se não houvesse, naquele pequeno fragmento do universo, ideias diferentes. Havia-as. Mas habitavam outros pequenos fragmentos do universo em onanista elucubração coletiva. Os pequenos fragmentos que alojavam diferentes ideias não eram intermutáveis. Não comunicavam entre si. Não queriam comunicar entre si: não tinham disciplina mental para aceitarem um princípio geral de tolerância; e faltava-lhes a abertura de espírito para não se convencerem que as discussões tinham de se saldar por um triunfo e, se possível, pelo convencimento (e arregimentação) do oponente.
Para derrotar este errático existir, o sanatório era um lugar de abertura. À entrada, em letras garrafais, a única regra: “aqui não entram verdades.” Não eram admitidas as categorias autoimpostas e insuscetíveis de questionamento. Os utentes, habitualmente pessoas que esmoreciam diante de tantas hesitações, como se sentissem órfãos de identidade por terem sido despojados de respostas, meditavam o tempo que quisessem. Não havia regras (a não ser a proibição de verdades autorreferenciáveis). Eram os utentes que iam tecendo pacientemente as suas próprias regras, moldando a motivação, construindo uma teia com o mosaico do pensamento. Não era importante saírem do sanatório com respostas. Era mais importante terem lucidez para formularem as interrogações que importavam.
Não admirava que o número de utentes do sanatório estivesse a diminuir. O lugar era propício a uma multidão de entendedores de tudo-e-mais-alguma coisa – o reino dos tudólogos. Era quase uma heresia desfiar um rosário de interrogações que pudesse servir de antinómico às verdades autorreferenciáveis. Era entendido como uma provocação inaceitável, uma desconfiança irredutível, a desconstrução de vontades tão liminarmente embelezadas na sua própria frivolidade. 
O sanatório só queria romper o círculo vicioso das verdades inimputáveis. Convencendo, sobretudo os de fora, que as verdades inimputáveis são uma mera lei de bronze, incapaz de se provar a si mesma por não aceitar interrogações de sinal contrário. 

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