17.5.19

Periclitante


Dead Can Dance, “ACT II: The Invocation”, in https://www.youtube.com/watch?v=wjm5o0ZxLyg
A cegonha aperaltada está de atalaia ao ninho, protegendo as crias. O ninho – e os ninhos das outras cegonhas – está empoleirado numa torre onde os cabos elétricos encontram ancoragem. A cegonha faz um exercício de equilibrismo em cima de um cabo elétrico. Um dia destes, ouvi um velhinho dizer a outro que não entendia a contingência das coisas, dando como exemplo os pássaros que aterram nos cabos elétricos sem receberem uma descarga: “se fosse connosco, morríamos esturricados.” Ou:
Por um sortilégio qualquer, o pedregulho de elevada tonelagem desafia as leis da física. Está no limite do precipício, apenas suportado por uma aresta que o fixa ao chão, por um efeito de prestidigitação. Dir-se-ia: se baixa um vento tempestuoso, o pedregulho não aguenta e acaba aos trambolhões, ladeira abaixo. Faz lembrar o capitalista avarento que, possuído por uma súbita necessidade de compor a imagem, se dedica ao mecenato sabendo que o museu apoiado está para acabar. Ou:
A angústia derruía-a por dentro. Não sabia o que dizer. Tinha conhecimento da ignomínia do companheiro. Não queria falar no assunto – temia que ele reagisse de maneira desabrida, numa improvável inversão de papeis em que só uma mente conturbada e empenhada à liberdade do outro (mas não à sua) podia incorrer. Ao mesmo tempo, estava cansada de muito calar. Sentia-se refém de um dilema. Assim como o mar hesitante que, no epílogo da maré alta, quase leva consigo o cadáver de uma lagosta que jaz na areia humedecida pela chuva miudinha. Ou:
O cientista parece o novelo de lã que, atirado ao cesto de basquetebol, fica cai-que-não-cai até se imobilizar num equilíbrio frágil em cima do aro. O cientista está dividido entre duas teorias. As duas têm prós e contras. Não consegue medir a teoria que se distingue pelo maior saldo líquido de prós. E mesmo que o exercício fosse para a frente, não estava convencido do método: um punhado de prós de uma teoria pode compensar o numeroso exército de prós da outra teoria. É o dilema que coteja qualidade com quantidade. O cientista não consegue decidir. Até que um rapaz, o mais alto de todos, conseguiu repatriar o novelo de lã do aro que encima da tabela de basquetebol. Ou:
O jardineiro encontrou uma carteira perdida. Lá dentro, trezentos e cinquenta euros em notas. O jardineiro está convencido que ninguém o viu a recolher a carteira. Apetece-lhe meter o dinheiro ao bolso e entregar a carteira para o inventário dos perdidos e achados, anonimamente. Os trezentos e cinquenta euros vinham a calhar, logo no mês em que é preciso comprar os livros escolares dos dois filhos. Mas o jardineiro não tem a certeza de que não houvesse vivalma nas imediações. Pode ter havido alguém a espiá-lo no momento em que descobriu a carteira recheada de dinheiro. Entre o despedimento por ação indevida e um rédito extra, sente-se dividido. Fica mais de meia hora a varrer o mesmo lugar, olhando e olhando para a carteira, indeciso. A mesma indecisão do gato que não sabe se há de atravessar a rua por onde estão sempre a passar automóveis e camiões e motas e pessoas.

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